𝐂𝐀𝐏 𝟎𝟑 ━━ 𝑁𝑜𝑖𝑡𝑒 𝑓𝑒𝑙𝑖𝑧

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Os pisca-piscas coloridos oscilavam seu brilho como se fossem miúdas fadas que presenteavam a paisagem branca com a magia das cores. Estavam em todo lugar, enroladas nas árvores, contorcidas nos postes, nas barraquinhas bem enfileiradas que exalavam um cheiro de dar água na boca. Música, muita música preenchia o ambiente mesclado com o burburinho dos presentes.

Crianças corriam de um lado para o outro, encantadas com as luzes cintilantes e os sons festivos que invadiam o ar gelado da noite de inverno. Os adultos, por sua vez, se deixavam levar pelo clima que apenas o feriado mais aguardado do ano poderia oferecer.

Hoje é um dos dias mais frios do ano, mas isso não impediu os moradores de todos os lugares da Noruega se deslocarem de suas casas quentinhas para apreciar o grande festival, e eram tantas pessoas que mal se podia andar. 

Deslocar-se pela multidão compacta se tornou uma tarefa desafiadora, o ar glacial parecia invadir meus pulmões a cada passo, mas eu persistia, movida a encontrar qualquer indício da presença dos meus pais. A busca se tornava árdua nessas condições, mas confiante de que a distintiva cabeleira vermelha de mamãe e a imponente estatura de papai seriam meus guias nesse emaranhado de pessoas.

— Lenna? — Uma voz surgia em meio a tantas outras, alimentada por falsas esperanças. Meu coração palpitava, tentava visualizar quem seria a dona da voz.

Era apenas Diana, com quem tive que compartilhar minha partitura dias atrás. Uma leve surpresa se insinuou em meus pensamentos. Não que sua presença me desgostasse, mas uma expectativa por encontrar meus pais se desfez. A menina ergueu sua cabeça, afastando delicadamente os fios loiros que teimavam em cobrir seu rosto, revelando seus olhos curiosos e expressivos.

— Diana. — Tentava abrir um sorriso — Estou atrasada? 

A garota fazia uma expressão preocupada enquanto assentiu com a cabeça.

— Melhor não enfurecer o maestro mais ainda. O que está fazendo, hein?

Voltava os olhos pela última vez no mar de pessoas, dando um suspiro de desânimo.

- Tentando dar uma olhada nos pinheiros.

A loira me lançava um olhar de indagação, a seguir apalpava meu ombro em solenidade.

— Eles irão vir.

Tinha me esquecido que de ingênua apenas seu rostinho inocente mesmo, porque essa garota consegue simplesmente ler as pessoas com uma facilidade impressionante. Diana me atira um sorriso de condolência, eu retribuo curvando os lábios em um sorriso falso.

* * *

Podia sentir o olhar enraivado do Maestro queimando minha testa de longe e conforme adentravamos o convento mais ele franzia sua enrugada testa.

— Certo. — O músico lançava-me um olhar de desprezo. — Provem serem dignas de estarem naquele palco e repassem a melodia. — Comandava as demais moças com seus instrumentos já em mãos. — Tenho assuntos que precisam ser resolvidos.

O tutor sai ligeiro, fazendo algumas noviças se entreolharem em indagação, já outras estavam ocupadas demais com seus instrumentos para ligar. Que inclusive me fez notar que todas estavam com seus instrumentos em mãos, menos eu.

— Onde está seu contrabaixo, Lenna? Não me diga que conseguiu esquecer de um negócio desse tamanho. — Gesticulava Diana, abrindo seus braços como se estivesse medindo o tamanho do mesmo.

Voltava meu olhar para as noviças, que já se preparavam para tocar.

— Podem passar a música sem mim. Não vou demorar.

Acelerava o passo pelos corredores do convento, que se encontravam mais escuros que o normal… e vazios. Todos estavam lá fora curtindo o melhor da estação enquanto nós estávamos aqui, castigadas por nossos instrumentos musicais.

A presença de um ruído persistente faz-me desviar da rota até a sala destinada. Ecoava de forma abafada e suave por toda a acústica do lugar. Eu me esgueirava entre sua abertura. Esfregava os punhos contra meus olhos para ter a certeza de que eu não estava vendo coisas, e meu corpo mal respondia. Mas… por mais profano que aquela cena seja, não tinha o direito de estar surpresa. 

O homem que outrora comandava noviças com seus instrumentos agora estava com seus dedos por debaixo do hábito de Norabel, devorando seus lábios como se fosse um carnívoro feroz e faminto. Blasfêmias eram cuspidas da boca daquela mulher enquanto seus olhos refletiam plena luxúria. Ele lhe deu um tiro com eles, acertando os olhos do maestro, um olhar repugnante e sacana. O empurrou provocativamente, saindo de seu colo e insinuando-se a ficar de joelhos.

Por um instante que se estendeu como uma eternidade, a heresia ecoou em minha mente, martelando meus pensamentos com uma intensidade assombrosa. Não havia outra escolha senão traçar o sinal da trindade e seguir meu caminho, por mais que ainda estivesse assombrada.

A capela não era tão grande, o breve trajeto até chegar ali não tardou a se consumar, logo me deparo com a porta desgastada que, ao ser aberta, produzia estalos ecoantes que ecoavam pelo silêncio do recinto. O quarto escuro se desvelou diante de mim, com seus bancos desalinhados e uma tênue luz que permitia vislumbrar a grande figura de Maria, imponente no centro do espaço. Ao seu lado, repousava meu precioso instrumento, em silencioso convite para ser novamente tocado um dia após ser esquecido.

A claridade que adentrava o recinto escuro banhava singelamente os leves olhos de Maria, que me convidava por minhas mãos a rezar e meus olhos a fechar.

— Será que pode fazer eu me esquecer disso? 

— Vossa santidade não consegue aguentar uma cena de sexo?

Conseguia sentir minha respiração pesar em uma fração de segundos, virava-me rapidamente para a direção da inconfundível voz.

Era ele novamente, seu visual fantasmagórico se fundia com a penumbra do cômodo abandonado. Toda aquela sua maquiagem branca estava devidamente opaca em seu rosto, como se tivesse passado um bom tempo com ela. Um sorriso cínico se estampava em seu rosto intimidador.

— O festival é apenas fora do convento. — Minha voz trêmula vacilava. Era isso que ele queria que ecoasse em seus ouvidos, minha total vulnerabilidade à sua presença. Seu sorriso se abre mais e seus orbes azuis se voltam a cada canto da sala, analisando cada detalhe.

— O que estou falando era previsível, você é uma “esposa de cristo” ou algo do tipo.

Ele recita suas palavras calmamente, me ignorando por completo.

- Você irá sair daqui e não irá comentar com NINGUÉM sobre o que viu.

— O convento da Noruega doma um demônio bem debaixo de seu teto, sabia?

Foi como uma flecha atravessando uma ferida que já estava curada. Eu, tola, já deveria saber. A história nunca para de ser contada, ela vai se repetir, de novo, de novo… E, de algum jeito, ela chegará para mim.

— “O exorcismo da senhorita Hansen.” — Ele gesticula — Essa cidade medíocre sabe contar uma boa história.

A náusea que suas palavras e a cena passada me causavam era tamanha, uma onda de arrepios percorria meu corpo, parecia que meus olhos iam derreter em algum momento. Fechava a porta da sala abandonada, o que causou um estrondo.

— Lenna? — Diana olhava-me confusa. — Você estava demorando um pouco, tá tudo bem?

Por mais que eu quisesse dizer, meus lábios travavam em um profundo descontentamento e angústia interna.

Sudentemente, um odor de enxofre e carbono preenchiam nossas narinas. Diana pressionava seu Hábito contra o rosto enquanto uma névoa acinzentada tomava conta do ambiente.

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⏰ Última atualização: Jul 14 ⏰

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𝐉𝐔𝐃𝐀𝐒 ─ ᴇᴜʀᴏɴʏᴍᴏᴜs ✟Onde histórias criam vida. Descubra agora