Capítulo III: Dalekos

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Alyter

     O dia amanhecera esplêndido nas águas quentes dos mares tropicais. Naquela manhã, Alyter decidira que iria a superfície novamente, mas daquela vez com um objetivo especial: explorar Malů, pela primeira vez em toda a sua existência iria adentrar os fluxos fluviais da ilha, conhecer o íntimo de Malů e redescobrir uma parte da vida que por muito tempo havia ignorado. Desde a noite em que passara observando as estrelas com Ylilu, o jovem syrenio sentia um novo curso em seu coração, havia dado o passo final para a aceitação da falta de seus pais e enfim era capaz de entender o que o irmão mais velho dissera, era chegada a hora de transformar a dor em força e após tudo, o jovem se sentia preparado. Nada daquilo seria possível sem Ylilu, Alyter reconhecia aquilo avidamente e sentia que jamais seria capaz de retribuir tudo o que sua amiga já havia feito, a amava e admirava de todo o coração.

     Sem mais tardar, o jovem syrenio saiu em retirada pela água, cortando as nuances de azul com suas nadadeiras de forma graciosa. Atravessou a clareira, passou pelos recifes e então pelas falésias, por fim chegando no estuário de Malů, onde as águas doces se encontravam com as águas densas e salineas do oceano, beijando-as, envolvendo-as, unindo-se a elas, mas nunca se misturando. Alyter então atravessou a linha invisível que o separava do flume da ilha, mergulhando no fluxo de nuances esverdeadas. A princípio o jovem syrenio estranhou a correnteza, todavia, rapidamente tomou o ritmo do rio e passou a transpor cada vez mais intimamente seu leito.

     Apesar do fluxo fluvial que agia como uma pequena força um empurrando para trás, nadar em água doce parecia ser uma tarefa mais fácil, o tecido aquático parecia ser mais brando e Alyter sentia como se flutuasse melhor sobre aquelas águas, todavia, dentre os meandros sinuosos do rio, o syrenio precisou ir a superfície e permanecer sobre a margem por um tempo. Apesar de sua natureza aquática, aquelas não eram suas águas, logo, não poderia respirar com plenitude sob elas, o que acabava por obrigá-lo a fazer pausas sistemáticas para descansar e respirar melhor.

     O jovem syrenio perguntava-se se iria encontrar seus irmãos de água doce adentrando o rio. Em sua infância, o moçoilo marinho ouvira histórias sobre os syrenios que a muito tempo haviam ocupado os rios e lagos de Malů, porém nunca mais havia ouvido falar deles, misteriosamente haviam sumido.

     Alyter estava absorto em seus pensamentos quando ouviu um barulho vindo da mata densa próxima ao rio. Seu coração acelerou, ele pensou em fugir dali o mais rápido possível, mas sua curiosidade falou mais alto. "E se forem humanos?" Perguntava-se no intento de convencer a si mesmo de que deveria sair dali, todavia, se fossem humanos, ele deveria saber, para então poder alertar os outros, pensava o jovem. Ele então se aproximou vagarosamente, espreitando o mínimo sinal de perigo, foi então que ele viu uma criatura um tanto quanto inusitada tentando afugentar um bicho quadrúpede cujo Alyter desconhecia totalmente.

     A criatura em questão, era humanoide, possuía braços e pernas, mas era demasiadamente pequena para ser um homem, além de não ter a cor de um, pois tinha a pele muito azulada. Parecia ser velho, era magricela e possuía uma barba branca longa e trançada, o que contrastava com os cabelos de sua cabeça, que eram quase nulos. O velho ser estava coberto por panos brancos amarelados e se encontrava pendurado num galho, tentando a todo custo expulsar um animal quadrúpede que aparentemente o via como uma presa.

     — Me deixe em paz, criatura vil, antes que eu lhe mostre a ira dos mares! — Vociferou o velho que mais parecia uma gralha em seu ninho.

     Alyter riu brevemente da cena cômica antes de afugentar o bicho para longe. A velha criatura o olhou por alguns instantes e rapidamente pulou do galho diretamente para seus ombros.

     — Está atrasado. — Disse o ancião ao pousar nas costas do syrenio.
     — Ei! — Protestou Alyter.
     — Não há tempo para banalidades, ser do mar. Temos que ir a procura de dalekos. — Exclamou a criatura velha e desconhecida?
     — "Da" o que...? E como assim "atrasado"?
     — Rio avante! — Gritou.

     O pequeno ancião puxava os cabelos de Alyter assim como um atallon fazia com as rédeas de um tubarão. O jovem ser do mar perguntava-se como havia chegado naquela situação; levar uma criatura desconhecida, e deveras insolente, pelo fluxo do rio definitivamente não estavam em seus planos para aquele dia. Graças a Mykal, o velho era menor que um recém nascido e deveria ter menos da metade do peso de um, logo, não seria necessário esforço físico, mas sim um grande sacrifício de tempo.

     — Olha é... senhor, já que estou fazendo o favor de levá-lo à sabe-se lá aonde, poderia ao menos me dizer seu nome? Ou o que o senhor é? — Perguntou o syrenio.
     — Não sou o que sou, sou aquilo que se é. Você deveria saber disso. — Gralhou o velho.
     — Ugh... — Grunhiu o syrenio em desistência, continuando o percurso.

     A certa altura da estrada d'água, a antiga criatura que encontrava-se montada nos ombros de Alyter puxou seus cabelos com força, fazendo-o parar o percurso e em seguida pulando de suas costas em direção à margem.

     — Au! — Reclamou o syrenio — escuta aqui, seu...!
     — Silêncio, ser do mar. Você vai assustá-la. — Repreendeu o ancião.

     Alyter olhou na direção de uma planta um tanto quanto excêntrica na beira do rio, ou pelo menos era o que o jovem ser do mar achava ser. Dentre toda a vegetação garrida, aquela planta se destacava, não pela exuberância de cores, mas sim pela falta dela. Seus caules espinhosos, assim como as folhas, eram pretas e possuíam diversos e minúsculos pontos de luz, assemelhando-se a um céu estrelado e sombrio. As flores eram ainda mais exóticas, brancas como as nuvens, não tinham pétalas, ao invés disso, eram compostas por vários filamentos longos e finos que se estendiam a partir do centro, se assemelhando-se a calliandras. O jovem syrenio estendera a mão para tocá-la quando recebeu um pequeno tapa em sua mão.

     — Não, não. Tenha um pouco mais de educação, rapaz. — Repreendeu o velho desconhecido.

     O ser diminuto pegou delicada e cuidadosamente uma das flores pelo caule, em seguida removendo seus filamentos com voracidade e sem um mínimo de cerimônia, como quem descama um peixe, revelando então um fruto que se escondia dentre a palidez dos fios da planta. O dito fruto se assemelhava bastante a uma pérola, todavia, ao ser retirado da planta, o mesmo tomava uma cor azul e brilhante. Alyter, impressionado, apenas conseguia observar o que o velho fazia.

     — Veja, jovem, aqui está o daleko que viemos buscar. Você vai precisar dele quando conhecer o amor.
     — Conhecer o amor? Do que é que você está falando?

     Repentinamente, e desconhecido pulou na água, assustando o jovem syrenio, voltando segundos depois segurando um colar com um pingente de ostra prateado, abrindo-o e colocando o tal daleko em seu interior.

     — Escute bem, ser do mar. Tempos difíceis vem mas não ficam, pois se ficassem não seriam tempos. Você precisa acreditar naquilo que se é e não desistir do quem é amor e amar principalmente.

     O ancião entregou o colar com pingente nas mãos do syrenio e então se afastou, pulando na água e desaparecendo, deixando Alyter num estado de confusão que duraria por muito tempo. O ser do mar ficou surpreso ao olhar para o lugar onde se encontrava a planta exótica, se deparando com um espaço vazio. Nada mais parecia fazer sentido, mas uma estranha sensação de conforto pairava sob seu coração.

     Repentinamente o jovem sentiu um arrepio na espinha, como se alguém o observasse, olhou para a direção cuja seu instinto apontava, defrontando-se com uma entrada para uma zona onde a água tomava uma coloração azulada em contraste com a coloração marrom esverdeada do meio onde estava. "Parece ser um lugar lindo", pensava o syrenio.

     — Nem pense nisso, ser do mar. É ali que mora o perigo. — Disse o ancião surgindo repentinamente na água e logo após sumindo novamente.

     Aquela afirmação havia instigado Alyter, mas naquele momento decidira parar com suas explorações, já havia visto o suficiente, voltaria outro dia para desbravar o que parecia ser uma lagoa. Ele olhou para as mãos onde se encontrava o colar, observando-o por alguns instantes.

     — "Daleko", que nome ridículo, haha. — Disse Alyter.

     O syrenio então seguiu a correnteza em direção ao mar, onde pretendia encontrar seus irmãos e contar-lhes as boas-novas.

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