Capítulo XLII

10 4 12
                                    

Raoni ainda corria por ruas pouco iluminadas e estreitos becos quando ouvira um som estranho, desacelerou o passo e se concentrou nos ruídos, torcendo para lhe guiar no rastro da criatura. Não seria a primeira vez, desde que deixara o QG, que sua caça se resumiria a encontrar animais buscando alimento pela noite, porém, algo estranho se manifestava no ar, atiçando seus instintos. É isso, pensou Raoni, encontrei.

O solis se recostou numa parede e deixou que seus sentidos se apurassem, excluindo qualquer informação que fosse desnecessária à sua busca. Virou o rosto na direção em que os ruídos se ampliavam e se movimentou lentamente. Vasculhou com o olhar os caminhos disponíveis e seguiu à direita. Avançou até o limite que as sombras permitiam manter sua presença oculta, evitando os pontos em que as luzes dos postes alcançavam.

Sem se mover, os poucos minutos de espera pareceram uma eternidade. Então o viu. Sua respiração naturalmente ficando presa, enquanto assistia de soslaio a criatura farejar o chão, eventualmente arranhando uma parede ou outra, antes de voltar a fungar o nariz em busca de algo. Lentamente, Raoni desembainhou uma de suas adagas, o olhar fixo no amontoado em carne viva que ainda se movia mais à frente.

Deu apenas um passo, antes da cabeça da criatura virar-se em sua direção em uma velocidade assustadora. Raoni sentiu-se gelar, enquanto via pela primeira vez a sua feição aterradora. Tão rápido percebeu sua presença, passou a correr na direção do solis, que se jogou para o lado contrário, chocando-se em uma parede.

Raoni buscou com o olhar uma saída, correndo em sua direção o mais rápido que seu corpo permitia. Não precisava olhar para trás para saber que a criatura o seguia, os ruídos emitidos por ela cortavam a noite como flechas, atiçando terror em seu alvo.

Desespero tomou o solis ao perceber para onde o caminho o levava: uma rua sem saída. Sem que pudesse planejar seu próximo passo, a criatura pulou em sua direção, imprensando-o numa parede. Os olhos de Raoni focaram na enorme boca que se expandia, mostrando mal formados dentes afiados.

Ao perceber como o rosto do ser deformado se aproximava, levou uma mão ao seu queixo, forçando a boca a fechar-se, enquanto trazia a adaga ao alto e a usava para perfurá-lo onde uma orelha humana parcialmente formada escorregava desleixada. Raoni se permitiu sentir o gosto da vitória por curtos instantes, antes de assistir, com surpresa, como sua adaga era engolida pela massa de carne disforme.

O momento de distração permitiu que a criatura se libertasse do aperto e voltasse a buscar, com palpável fome, o rosto do solis. Instintivamente, levou um dos braços ao rosto, rápido o bastante para evitar que o rosto da besta tocasse o seu, mas dando-lhe livre acesso para que seus dentes firmassem em sua carne, perfurando-a. Sangue dourado vazava da mordida, enquanto o grito de dor de Raoni cortava o ar. Tomado pela dor alucinante, balançava o braço incontrolavelmente, tentando, em vão, arrancá-lo do aperto.

Enquanto pensava que seus gritos de terror seriam a última coisa que ouviria, outro som familiar alcançou seus ouvidos. O bater de asas e o assobio inigualável do Anu-branco atraiu seu foco. Em segundos, a enorme ave alcançava a criatura, bicando sua cabeça até que o braço de Raoni se encontrasse livre de sua mordida. O solis escorregou até o chão, segurando o membro ensanguentado, não percebendo ali que um pedaço fora arrancado.

O Anu-branco cravou seus dedos afiados nos ombros da besta, tirando-a do chão e jogando-a longe. E com uma curiosa expressão, Raoni assistiu a ave abaixar-se em sua direção, facilitando o acesso a suas costas. Num impulso, puxou seu corpo do chão, ignorando a dor lancinante que o atingiu apenas até se encontrar sobre o pássaro e este alçar voo, momento que deixou de lutar contra a escuridão que ameaçava o tomar.

Stellae - A maldição do Sol e da Lua [LIVRO I - COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora