Capítulo III

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Freya desceu no ponto de ônibus e adentrou o prédio que era como sua segunda casa, vinha tanto aqui quanto fosse possível e viável a conciliar todas as suas tarefas. As paredes na cor creme e a fachada do nome em ferro passavam uma atmosfera de simplicidade e até de monotonia para um transeunte aleatório, que o observasse do outro lado da rua, mas internamente, a verdade era outra. A casa de apoio a idosos Maria Cecília Berenice era um lugar para viver bem e dar afeto para idosos abandonados pela família ou que não a possuíssem, para uma cidade de 35.000 habitantes, como Andema, haviam muitos idosos nessa situação.

– Olá, Freya. Como vai? – Jaqueline, a recepcionista, lançou um sorriso brilhante para a jovem que acabara de entrar.

– Estou ótima, algo especial para hoje?

– Não, as coisas estão calmas e organizadas. Só o de sempre: as garotas morrem de saudades suas.

– E eu delas! – riu levemente. – Vou vê-las, qualquer coisa me avise.

Jaqueline assentiu e atendeu o telefone que acabara de tocar, assistindo Freya seguir pelos corredores e sendo cumprimentada carinhosamente por todos. Não deixava de pensar que o Maria Berenice ganhara uma fantástica aquisição quando a jovem garota resolvera se tornar voluntária, mas se perguntava a razão por trás disso e o que se passava na vida de Freya, ela escutava todas as histórias e cuidava como se fosse filha das velhas senhoras daquele lugar, mas não contava nada sobre si, além do superficial. No fundo, ela era um mistério.

– Boa tarde, Dona Augusta. Como está o joelho hoje? – perguntou Freya à senhora sentada nos bancos de espera do salão de aulas, sua pele negra contrastava com os cabelos brancos e crespos, suas bochechas gordinhas faziam Freya querer agarrá-las.

– Mais ou menos, minha filha. Acordei com uma dorzinha forte nele. – ela se abaixou e começou a massagear o joelho da senhora, que soltou alguns gemidos baixos.

– Parece que não vai aguentar a aula de hoje, não é?

– Acho que não, mas vou ficar assistindo da minha cadeira de rodas. Me dá um gosto enorme ver você e o pessoal dançando!

– Tudo bem, mas trate de melhorar para a próxima aula, quero ver o seu rebolado com força total! – Dona Augusta gargalhou enquanto Freya conversava com as demais senhoras e calçava um tênis para a aula.

Há cerca de um ano prestava serviço comunitário na casa de apoio, dando aulas de dança para os idosos dali, em poucos meses percebeu uma clara transformação no lugar; a princípio todos estavam receosos e arredios, mas agora mal podiam esperar pelos dois dias de aula semanais. A coordenadora do Maria Berenice,  Ângela Falcão, percebera as melhoras físicas e psicológicas nos seus pacientes, que estavam mais dispostos, felizes e com dores menos acentuadas.

Freya ligou o som e deixou tocar a seleção de músicas escolhidas para a aula do dia, que seria de forró; permitiu que escolhessem seus pares e começou a instruí-los, enquanto dançava com uma senhora na casa dos 70, que perdera os netos há três anos e vivia ali desde então. A aula não poderia durar muito para não cansá-las e transcorreu como de costume, com muita animação e risos. Freya esquecia do mundo quando estava ali, seja dançando com elas ou ouvindo histórias de uma Andema de décadas atrás.

Quase uma hora depois, Freya enxugava o suor do rosto e se despedia das senhoras com abraços; se dirigia ao corredor que levava à saída quando teve seu braço puxado inesperadamente para baixo. Sobressaltou-se com o susto e encarou a razão de sua interrupção aleatória.

A hora está chegando. Prepare-se para derramar sangue.

– Dona Augusta? A senhora está bem?

A mão raquítica ampliou o aperto em seu braço, Freya tentou desvencilhar-se, mas em vão; a senhora voltou a falar, sua voz soando como possuída por um ser milenar, era arranhada e distante, sobrenatural:

Alimentará o fogo dos antigos deuses ou o apagará com seu próprio sangue?

– O que está dizendo... – o coração de Freya parecia saltar do peito, sua voz ameaçou fugir de seu corpo e temeu o que via nos olhos estáticos da senhora na cadeira de rodas: vazio. – Augusta? Está me machucando. Dona Augusta, pare! Dona...

Tão rápido pegou em seu braço, o soltou. Freya encarava incrédula a mulher à sua frente, seu rosto voltara à feição natural, seus olhos com o brilho usual de vivência, sua voz doce e gentil quando voltara a falar:

– Mal posso esperar para a próxima aula! – batia palmas, alegremente. – Você está bem, minha menina? Está pálida como um papel, parece até que viu um fantasma!

Dona Augusta ria e acenava feliz, enquanto Freya caminhava apressada, a respiração falha e a mente desnorteada. Jogou a mochila nas costas e correu para longe dali.

Que merda foi essa que aconteceu ali? Relembrou a voz que saíra da boca da sua pessoa favorita da casa de apoio e suspirou. Devo estar imaginando coisas.

 Devo estar imaginando coisas

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Notas:

Andema: Cidade fictícia, nome originado do Uandema Totomorac, "noite fria" em Tupi.

Stellae - A maldição do Sol e da Lua [LIVRO I - COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora