Capítulo Cinco - Alguém do Passado

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Reino de Achyles

Letícia se encontrava no seu banheiro privado, colocando faixas em seus novos ferimentos causados por aquela psicopata, seus braços estavam arranhados e mordidos, poderiam suspeitar que tivesse sido um animal selvagem o culpado.
Não demorou para terminar de passar as bandagens, colocou uma camisa branca larga para não apertar seus machucados, com uma calça marrom envelhecida, que estava em cima de uma cadeira ali dentro, para não apertar seus cortes. Caminhou lentamente e cambaleando um pouco até sua espaçosa cama, onde deitou com cuidado para não irritar nenhum ferimento, a monarca iria descansar um pouco antes de ficar trancada em uma sala o restante do dia, tendo reuniões entediantes que a deixavam com sono.
A morena sentiu seus olhos pesarem e sua vista começou a ficar turva até não enxergar mais nada. Se encontrava num profundo descanso que o mundo ao seu redor não existia, as suas feridas não doíam mais, o cansaço havia sumido, o peso em seus ombros desaparecera....
Em um sonho profundo a rainha se encontrava em uma praia deserta, o oceano refletia o pôr do sol avermelhado, era uma visão tão linda e acolhedora, o vento soprava os fios do seu longo cabelo castanho, ela sentia a areia em seus pés descalços, era reconfortante. A dama trajava um vestido verde-escuro que não possuía mangas, tinha alças largas de renda e uma fenda na lateral do corpo que começava no meio da coxa e ia até o final da saia comprida lisa. Mas ela não estava sozinha, tinha um homem mais a frente que estava de costas para Letícia, imaginando ser o seu Azz, foi andando até ficar do seu lado.
Seu companheiro estava com roupas elegantes das cores pretas e vermelhas, mas o homem ali não era o seu amante era.... Não podia ser... Impossível... Ele olha para Letícia com um olhar penetrante que a mesma imaginou que aquele ser conhecido podia ver sua alma manchada. Se afastou dele em passos apressados, o mesmo se virou, fazendo assim os dois ficarem frente a frente.
— Há quanto tempo. Letícia. — O tom presunçoso que o mesmo usou para dizer o seu nome fez seu coração acelerar.
— Eu.... Eu não entendo, você está morto, virou pedra! — Letícia diz mais para ela mesma do que para ele. O som de um rosnado se fez presente entre ambos.
— Me poupe dos seus chiliques mundanos. — Ele olhava para ela, com os seus olhos totalmente negros, como carvão.
— Por que está aqui?
— Não importa.... Mas fui informado que uma garotinha está sob os seus carinhosos cuidados, o irmão dela está com saudades da dela, poderia fazer a gentileza de soltá-la? — Perguntou o cavaleiro com uma educação, mas com um tom de deboche, a mesma riu daquele teatro.
— Por que eu faria alguma coisa que você mandasse?
— Porque salvei você dos filhos do fogo azul, está me devendo mais de uma inclusive,pequenina— Letícia olhou para ele com nojo.
— Não devo nada a você, seu miserável!
— A mocinha deveria tratar melhor os mais velhos, esses não foram os modos que lhe ensinei quando pequena. — o mesmo diz com um sorriso.
— Não venha falar sobre isso comigo, tudo passou de uma mentira para você, todos aqueles anos... — ela fala daqueles anos com pesar na voz.
— Foram apenas negócios, supere isso. Letícia — o mesmo andava em direção a ela enquanto falava. Ela olhava ele se aproximar com cautela, a mágoa que sentia dele era grande e profunda, como a raiz de uma árvore envelhecida, "Apenas negócios né..."
— Não vamos falar do passado para negócios, senhor. Quer negociar? Então negociaremos. — A monarca endurece suas feições, e cruza seus braços quando o mesmo chega perto demais, invadindo seu espaço pessoal.
— Afaste-se! — diz com firmeza para o homem que dá três passos para trás, apenas para demonstrar o mínimo de respeito que sentia por ela, por conta daqueles anos...
— Solte-a e nós ficaremos longe das outras.
— Me recuso.
— Ora, tê-la como minha prisioneira é o meu ás para manter vocês longe de todos, enquanto eu tiver a ruiva, vocês não poderão tocar em ninguém dentre os quatro reinos.
Pequenina realmente acredita nisso?
— Se não fosse verdade, por que ainda não atacaram?
— O momento talvez, quem sabe.
Letícia queria sair daqui, voltar para a realidade onde ele estava morto!
— Não vou liberta-lá.
— É o último aviso. Letícia, estou tentando mostrar misericórdia. — O inimigo ali estava começando a ficar impaciente, com a atitude da rainha.
— Misericórdia? Isso você nunca mostrou, somente falsidade. — A mesma levantou a voz e seus olhos expôs um leve brilho.
— Não me importo que seja o último aviso, você não é o pior ser que já conheci, nem o seu maldito mestre!
—Não ouse insultá-lo sua humana! — O mesmo gritou a raça dela, como se fosse o pior dos insultos.
Com tamanha raiva o ser deixou escapar suas enormes asas negras, que estavam escondidas, seus caninos aumentaram de tamanho, ficando maior do que de um lobo, veias avermelhadas se formaram ao redor dos olhos negro e suas mãos agora tinham garras tão afiadas que poderiam cortar até mesmo uma rocha.
— Vai morrer por querer me desafiar e querer desafiar ele!
— Alguém querer minha cabeça não é nenhuma novidade para mim. — Letícia não demonstraria medo, não daria esse gosto para ele. Mas tanto a calmaria dela como a dele, estava se esgotando.
— Tenho uma lista das pessoas que querem me matar e o seu chefe não é exceção nem você, principalmente os filhos do fogo azul. — Letícia os menciona com uma sensação amarga no final da boca.
— Não deveria ter os roubado, a culpa é sua pelo que aconteceu com você. — disse de uma maneira provocativa, e a mesma mordeu a provocação.
Os olhos dela brilhavam num tom verde tão intenso que parecia duas pedras esmeraldas refletindo a luz do sol, o cabelo de Letícia começou a se movimentar de uma maneira como se tivesse vida própria. Os fios deixaram de ser fio e ganharam uma aparência escamosa, de repente diversas cobras surgiram na cabeça da Letícia, que tremia de raiva.
— Maldito! — Gritou com fúria para aquele ser sobrenatural, sem se importar quem que ele.
A monarca se aproximou dele como uma serpente dando o bote em sua presa, colocou as duas mãos no rosto do homem, o levando a olhar para si, olhou no fundo daqueles olhos totalmente escuros que colocava medo em qualquer um, o brilho verde penetrando nas íris do breu.
Uma batalha de olhares foi travada entre os dois, lágrimas de sangue escorriam pelo rosto de Letícia por estar se esforçando mais que o normal, afinal ele não era uma pessoa normal.
O homem começou a ser petrificado, virando em uma estátua por completo. Ela se afastou dele com tanta rapidez buscando por ar sem perceber que prendera a respiração naquele momento, ficou olhando para a estátua do homem alado à sua frente enquanto puxava o ar desesperadamente para os seus pulmões.
— O mesmo truque não funciona duas vezes com a mesma pessoa, pequenina— Ela sentiu uma respiração no seu pescoço e olhou para trás lentamente com medo, e então visualizou aqueles olhos tenebrosos e o sorriso macabro com os dentes pontudos. — Não se finja de medrosa agora, isso é somente o começo.
Uma risada amedrontadora ecoou pelos ouvidos da Letícia que se encontrava paralisada, olhando para frente de novo, vendo a estátua, ele deveria.... Ele deveria estar petrificado, não rindo. Logo em seguida a mesma sentiu uma dor nas costas que continuou em seu peito, quando olhou para baixo viu a ponta de uma lâmina colubrina negra pingando sangue, o seu sangue.
Ela estava tão imersa em seus pensamentos que não sentiu na hora o ataque, mas agora conseguia sentir a dor da sua carne rasgada. Era uma sensação inexplicável aquela, as ondulações da adaga se mexendo toda vez que ele mexia a mão tanto imperceptível quanto propositalmente, era doloroso de tal maneira que dava a impressão que toda a sua pele seria rasgada. A monarca sentiu uma onda de sabor metálico na sua boca, que quando abriu sangue escorria por seus lábios em abundância.
— Daqui a quatorze dias viremos buscar a menina...
Letícia acordou daquele pesadelo num sobressalto olhando para todos os lados do cômodo procurando pelo ser anormal tão conhecido por si, tocou o seu peito e não sentiu a adaga.
Algumas gotas de suor escorriam pelo seu rosto fazendo com que alguns fios do seu cabelo castanho-claro se grudassem na sua pele, sua respiração estava alta, se alguém passasse em frente ao seu quarto talvez pudesse ouvir sua respiração.
Sem ter muito controle sobre seu corpo, foi andando ou correndo talvez, não sabia dizer naquele momento, o seu corpo estava a levando para fora dos muros verdes escuros, do palácio, podia ouvir pessoas a chamando, mas isso não importava agora.
Com ar faltando em seus pulmões chegou aonde desejava desde que acordou daquele sonho tenebroso, as ruínas daquele lugar estavam se misturando com a vegetação ao redor, seus pés calejados a levaram para dentro das ruínas, precisava ser eles...
A entrada estava destruída, não possuía mais a porta, as paredes com rachaduras fazendo assim o local ficar debilitado para ser morado, o local ficava no meio de dois rochedos. Nem parecia um castelo real, quando mais adentrava, mais memórias antigas voltavam à sua mente, como as flechas acertando o seu alvo.
Seus olhos avistaram uma antiga pintura já desgastada nas bordas pelo mau cuidado, mas ainda dava para ver o retrato pintado. As vestes da criança, feitas de um tecido fino e delicado, possuía uma tonalidade de verde tão clara que quase não dava para ver exatamente a cor do pequeno vestido, o mesmo se destacava diante das roupas masculinas com cores escuras atrás da menina.
O homem da pintura possuía um sorriso gentil no rosto, o mesmo continha linhas de expressão ao redor dos olhos, dava uma impressão cansaço, mas isso não influenciava tanto, algumas mechas de seu cabelo castanho estavam, soltas do coque, dessa forma caindo na frente de seus olhos negros. Letícia se lembrava daquele dia, onde teve que ficar para por horas numa mesma posição, achou aquilo em tédio torturante, mas também estava muito feliz, pois estaria em uma pintura com sua pessoa favorita, Felipe Rodrigues, o general naquela época, um grande amigo dos seus pais... um segundo pai para si...
Não percebeu, mas quanto deu-se conta estava parada em frente ao quadro do seu passado, era doloroso de ver aquilo, de estar ali, de lembrar dos dias que era feliz verdadeiramente, pois sempre que se lembrava daqueles dias, também se lembrava de como eles acabaram. Ela fechou os olhos espantando aqueles pensamentos tenebrosos, deu um longo suspiro e voltou a caminhar, deixando o quadro para trás.
Seus pés descalços, não fazia barulho quando tocava o chão sujo do local, quando chegou no final do corredor espaçoso. Entrou em uma sala do trono esquecida, nas paredes tinha rachaduras longas causadas em uma batalha de sobrevivência, a luz do sol que adentrava pelos buracos no teto, refletiam nas poças de água da chuva. Na frente de dois tronos feitos de uma pedra verde que se mesclava entre tons claros e escuros, tinha três estátuas, duas tinham a figura de homens diferentes e a outra tinha a forma de uma mulher com uma espada cravada no peito dela.
Naquela época não entendia o que estava acontecendo, não entendia o motivo de pedirem aquilo para ela, atualmente se arrependia de ter obedecido, eles não mereciam esse destino, talvez um deles merecesse, alguém que deveria ficar preso na própria mente, portanto enlouquecer.
Se aproximou das estátuas em passos inseguros, subiu os poucos degraus que tinha ali para chegar nos tronos e então se aproximou das estátuas, queria tocar nelas depois de tanto tempo.
Com cuidado levantou sua mão trêmula até o rosto da mulher petrificada e tocou a pedra gelada com a sua palma, lhe causando arrepios. A estátua tinha a face mais madura, porém muito bem cuidada, parecia estar entrando na fase dos trinta e poucos anos. Os pequenos olhos que transmitiam preocupação, o nariz reto igual o de Letícia e a boca fina ensanguentada que tentava abrir um sorriso, a mesma parecia estar tentando até o fim esconder sua dor.
Deslizou suavemente sua mão até a espada, passou seus dedos em cada detalhe na do punho e guarda mão, esse que possuía o emblema de sua casa. Em bronze, a cabeça de uma cobra com a boca aberta mostrando suas duas presas, os olhos da serpente pareciam duas esmeraldas vibrantes.
Desviou o seu olhar da mulher para as outras estátuas masculinas, a mais distante estava próximo ao trono, ele parecia desesperado e o outro estava a apenas alguns passos de distância da estátua feminina, com lágrimas nos olhos, o dono da espada.
Letícia andou até ele e seus olhos começaram a brilhar como no sonho, seus cabelos castanhos mudaram de forma, se transformando em diversas cobras esverdeadas. Colocou as duas mãos no rosto do homem e olhou em seus olhos petrificados e... não viu nada, a alma dele não estava ali, o mesmo tinha de alguma maneira se soltado da sua petrificação.
Logo após de voltar a sua forma humana ouviu um... rastejo? Olhou em volta e avistou uma linda cobra preta ao redor do pescoço da estátua mais distante. O réptil levantou sua mediana cabeça e a olhou. Letícia sentiu um arrepio em sua espinha com aqueles olhos ônix a encarando como se vissem sua alma manchada, mas, ao mesmo tempo, desejou se aproximar do animal e assim fez.
Quando se aproximou levantou seu braço em direção à cobra, parecendo ter entendido o pedido se moveu para ficar com a rainha, os dois se encararam por um longo tempo, não sabia dizer ao certo, apenas ficaram ali e de alguma forma se entendiam mesmo sem precisar usar palavras.
Aquele momento foi interrompido que parecia ser passos apressados, ambos olharam na direção do barulho e em poucos instantes um Félix cansado apareceu os olhando preocupados.
Assim que avistou sua rainha sentiu um alívio por vê-la bem, mas esse sentimento foi logo substituído por pavor, correu ainda mais rápido para chegar nela que nem se deu ao trabalho de ser silencioso, afinal aquele lugar em um local sagrado para todo o reino de Achyles.
Quando se aproximou dela, avançou suas mãos na serpente e a agarrou com força, principalmente sua cabeça para não abrir sua boca e espalhar seu veneno, assim que a pegou, jogou-a o mais longe que conseguiu, a fazendo bater na parede e cair em uma poça d'água.
— Por que fez isso? — Letícia gritou com ele, enquanto olhava a mais bela cobra que já viu, sair da água lentamente, olhou para ele com raiva.
— De nada por salvar sua vida! Aquela cobra é a serpente da morte, uma picada dela e você não dura até o final do dia! Nem você escapa do veneno dela.
— Ela não ia me fazer nada.
— Como pode saber disso? — Perguntou para ela enquanto tirava alguns fios de cabelo do seu rosto bronzeado.
— Se quisesse fazer algum mal, já teria feito. — Letícia voltou seu olhar para o local onde a cobra caiu, mas ele sumira, não parecia estar naquele salão, será que a mesma tinha se machucado e por isso se escondeu?
— Está tentando achar ela?
— Ele. — Corrigiu seu conselheiro.
— Como sabe?
— Pela cauda, mas o que você está fazendo aqui? — Perguntou Letícia olhando séria para ele.
— Dois motivos — Ele levantou a mão esquerda mostrando dois dedos — Primeiro, você saiu correndo do castelo, descalça, com uma roupa masculina e tinha um olhar de pavor no rosto. — Letícia desviou o olhar, envergonhada, das suas atitudes. — Segundo, antes você sair como uma maluca do castelo e me fazer correr atrás de você, recebi uma mensagem sobre alguns yakais mortos perto da floresta Acry.
Yakais mortos?— O espanto na voz dela era notável, afinal matar um yakai já é difícil, imagina mais de um. Precisava investigar isso antes que algum conflito ocorra.
— Vamos, preciso checar isso.
Os dois então partiram para fora das ruínas do antigo castelo, para atenderem aquela mensagem, não notaram estarem sendo observados por um par de olhos ônix.

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NOTAS DO AUTOR:
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