Sessão 3

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Desta vez, Ramiro chegou tenso, com a respiração até meio acelerada. E nem esperou a psicóloga perguntar nada, já foi despejando enquanto se acomodava no sofá:

- Tá dando tudo errado, o Kevinho tá quase desistindo de eu, porque eu continuo seguindo as orde do patrão - a voz dele era quase chorosa - Mas eu to até mandando nos otro peão de novo, patrão tá confiando mais em mim. E se eu não obedecê, ele me manda embora, daí onde eu vô morá, como eu vô comê?

- Calma, Ramiro. Respira fundo e me conta o que o Kelvin disse - Marta falou bem pausadamente, dando tempo para que o homem ficasse mais calmo.

Depois de encher os pulmões, o moreno prosseguiu, com um tom triste:

- Que ele achô que eu tinha mudado por causa do namoro, das aula, da terapia aqui... Mas ele tá duvidando, achando que perdeu tempo com eu. Disse que eu não esforço pra sair do buraco que o dotor Antônio me enfiô.

A terapeuta encarou o paciente:

- E você está se esforçando? Trouxe alguma ideia de sair dessa dependência que você tem nesse trabalho, buscar outra ocupação?

Ramiro olhava para os sapatos:

- Não consegui, dotora, to trabalhando muito, ficando de guarda quase que direto na frente da casa do Caio, vigiando ele pro patrão.

- Então seu amigo não está errado, não acha? - Marta tentava provocá-lo à reflexão, mas com cuidado.

O peão aprumou-se no sofá, avisando com convicção:

- Não é amigo, não, é namorado.

A atitude despertou um sorriso na psicóloga:

- Que bom ver você afirmando isso, Ramiro... é uma evolução. - ela ficou séria novamente - Mas vamos focar: você não acha que realmente precisa fazer algum esforço para mudar de vida?

Ele suspirou profundo e perguntou de um jeito desanimado:

- Como a gente desaprende a obedecê?

- Talvez pensando em como começou essa relação de obediência. Como é que você conheceu o doutor Antônio? - sugeriu a terapeuta.

Ramiro escorregou um pouco no sofá, recostando as costas, e começou a contar, com um olhar distante:

- Ah, eu era bem menino ainda. Lembro que às veiz, minha mãe e eu ia dormir com fome, porque não tinha nada de comê em casa. Ela lavava roupa pra fora, pegava faxina, mas nem sempre tinha trabalho. Eu também fazia qualquer serviço que me dessem um troco. Pai eu nunca conheci, era só eu e a mãe na luta. Até que o patrão apareceu e disse pra minha mãe que, se eu fosse trabaiá na fazenda, comida e teto não iam me faltá nunca. Ele também arrumou serviço pra minha mãe numa casa de família, na nossa cidade. E eu vim, porque era isso, ou morrê de fome.

- O patrão simplesmente apareceu na sua casa?

- É, eu não recordo direito, ele conversô um bocado com minha mãe, e acertaram tudo. Acho que alguém deve ter falado pra ele que nóis precisava de serviço, e ele precisava de braço, né?

Marta ficou pensativa. Provavelmente havia mais coisas naquela história do que o rapaz sabia. Ele torcia os dedos, inquieto, claramente tendo mais a contar.

- Continua. E como foi quando você chegou na fazenda? - a psicóloga deu a deixa.

As palavras de Ramiro saiam meio atropeladas, mas ele parecia ter necessidade de botar tudo pra fora:

- Eu tava tão magrinho, sequinho, que nos primeiro dias o patrão nem me mando trabaiá, só pediu pra Angelina me dá de comê. E eu comia tudo que ela botava na minha frente. Também brincava com o Caio, tomava banho no rio. Mas logo o patrão foi me dando muito serviço, e dizendo que não dava tempo de eu estudá, porque eu tinha minhas obrigação, pra continuá tendo teto e comida. E aí eu fui acostumando a vivê assim, sempre trabaiando. Não conheci otra vida.

O homem ficou quieto, enroscando os dedos sem parar. A terapeuta pensou um pouco no caminho a seguir, e questionou:

- Como era a relação com seu patrão? Ele sempre foi rude, usando palavras ofensivas?

O olhar de Ramiro ficou mais triste.

- Quando eu fazia arguma coisa errada ele chamava de jumento, jogava na minha cara que era muito generoso comigo, e o mínimo que eu tinha que fazê era meu serviço direito. Mas ele dava coice nos filho também, principalmente no Caio. Então eu achava que o patrão gostava de eu. achava que ele xingava porque queria que eu fosse mió. Como eu não tive pai, e o patrão me acolheu, eu pensava que ele era como um pai pra eu, o mais perto ia chegá de tê alguém pra orientá na vida, pra servi de espelho, sabe? - a voz dele ia ficando mais embargada conforme falava.

Marta puxou o ar para os pulmões, porque tinham chegado num ponto bem delicado:

- Ramiro, é muito importante você estar percebendo que idealizou seu patrão como uma figura paterna que lhe faltava. Você criou uma imagem de um pai que nunca foi real, entende?

- To começando a entendê e ficá até assustado, o patrão parece que só pensa no mal, só pensa em ódio - o homem franziu a testa, os olhos entregando pavor.

- Não é um modelo a ser seguido, né? - acrescentou Marta.

Ramiro balançou a cabeça, com uma uma expressão de desalento:

- Já quis tanto sê igual ao patrão, tê minhas terra, meus peão pra mandá, pra chamá de jumento... mas sê chamado de jumento dói, causa de quê eu vô fazê isso com os otro? Mas quem eu vô sê agora? Não sei sê diferente.

- Uma das razões para você estar aqui é entender quem é o Ramiro que você quer ser, de verdade - pontuou a psicóloga, fazendo o paciente esboçar um sorriso:

- Só sei que quero sê o namorado do Kevinho - agora a voz dele era doce.

Marta também sorriu, comovida com a evolução do rapaz:

- Já é um caminho. Mas além do Kelvin, o que você quer pra sua vida? Não dá pra trocar uma dependência por outra... Mas isso é assunto pra próxima sessão. Vai refletindo sobre isso, combinado?

- Combinado, dotora. Mas já me deu uma boa clareada nas ideia. O Kevinho qué que a gente vai embora de Nova Primavera... e ele deve de tá certo, né? Vô conversá com ele pra entendê melhor como é que a gente vai consegui fazê isso - o moreno estava bem mais confiante.

- Muito bom. Espero boas notícias na próxima sessão.

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