Sessão 2

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Ramiro parecia até meio eufórico quando entrou na sala naquele dia. Mas de uma euforia de felicidade, quase de criança que realizou um sonho.

- Parece que você tem notícias boas hoje de novo, né? - observou Marta enquanto sentavam em seus lugares.

O peão aprumou o corpo e anunciou:

- O Kevinho e eu agora somo namorado - ele falou a última palavra de forma pausada e estufando o peito.

- Que bom! E como foi isso? - a psicóloga sorriu, comovida.

O homem foi contando sem olhar diretamente para a terapeuta:

- Ah, teve o casamento do delegado Marino, a senhora conhece, né? Com a Lucinda da cooperativa. Daí o Kevinho teimô que queria que nóis fosse junto como namorado. Mas primeiro eu respondi que nem um burro chucro.

Ramiro fez uma pausa buscando o ar, e Marta o estimulou a continuar:

- Você não queria ir com esse rapaz?

- Queria, queria muito... - a voz dele saía trêmula, e o olhar ficou ainda mais baixo - mas é que homem com homem não pode... Foi o que sempre me ensinaram, desde muito pequeno, antes até de eu chegá na fazenda.

A psicóloga interveio com muito cuidado:

- É, essas ideias que colocam na cabeça da gente desde cedo são difíceis de desconstruir, mas não impossíveis. Como você resolveu essa questão?

- Kevinho saiu furioso com eu, daí fiquei pensando, pensando... E entendi que eu não tinha que me importá com os otro, porque só o Kevinho importa. - O peão foi levantando o rosto e abrindo um sorriso enquanto falava - Daí juntei toda a minha corage e fui lá, falei pra ele "nóis vai como namorado". Ele ficou tão feliz que inté pulô nas minhas costa e deu um monte de beijo no meu cangote.

- E você? Como se sentiu?

Ele até relaxou o corpo, ficando meio jogado no sofá:

- Como se eu tivesse carregando um saco de semente bem grande, e largasse ele depois de muito tempo.

- Aliviado e mais leve?

- Acho que é... - Ramiro deu um risinho que demonstrava o alívio, e ficou meio perdido nas lembranças.

Marta o chamou à conversa de novo:

- E no casamento, como foi?

O moreno sentou mais aprumado, e agora contava olhando para a "dotora":

- Ah, eu fiquei envergonhado no começo, com as pessoa tudo olhando pra nóis. Mas depois fui achando tão bom tá ali com o Kevinho, sendo feliz. Parece inté que eu era otra pessoa... Ali eu não era o jumento, o mandado do patrão pra fazê as coisa que ele não qué sujá as mão... Ali eu era só o Ramiro do Kevinho - os olhos dele iluminaram-se de um jeito que até emocionou a terapeuta.

- Então você tá descobrindo um novo Ramiro... - ela prosseguiu com voz suave - E esse novo homem, é melhor do que aquele que você sempre foi?

O peão sorria largo ao relatar:

- Muito mió! O buquê da noiva caiu no meu colo, daí o Kevinho veio todo contente, falando que nóis vai casá, e eu fiquei imaginando meu pequetito todo de branco, tão lindo... Parecia inté um sonho bão. Despois a gente foi pro quartinho, e ficou juntinho na cama, bem garradinho. E quando eu fico assim com o Kevinho, dá vontade de ficá pra sempre ali, não saí nunca do ladinho dele - de repente, a expressão dele ficou séria e tensa - Mas de manhã o patrão apareceu e estragô tudo. Tive que escondê o Kevinho no armário, mas dexei as flor e o patrão viu, ficou debochando d'eu, dizendo que to esquisito.

Marta sabia que tinham chegado num tema crucial para a evolução daquele paciente, e pontuou com o cuidado de sempre, mas incisiva:

- Então ele não sabe do namoro? A opinião dele importa muito pra você?

Ramiro começou a torcer os dedos:

- O patrão sempre foi como um pai pra mim. Dói quando ele diz essas coisa, porque vô decepcioná ele quando soubé do meu amor pelo Kevinho. Mas eu decepciono o Kevinho também, quando cumpro as orde do patrão. Mato grosso do céu! - ele coçou a barba, angustiado.

- Que tipo de ordem ele tem lhe dado? - a terapeuta agora estava preocupada.

O peão parecia envergonhado de revelar aquilo, mas ao mesmo tempo aflito para dividir com alguém:

- Ele qué que eu ache a viúva Aline de qualqué jeito, porque ela tá com dois neto dele no bucho. O Kevinho é amigo da viúva e ficô de mal com eu porque eu tenho que fazê isso pro patrão. Mas é o meu trabaio, porque o Kevinho não entende?

- Ramiro, acho que ele entende que é um trabalho, sim... Mas é um trabalho que faz mal pra você e pra outras pessoas. E como esse rapaz gosta muito de você, não quer o namorado siga trabalhando em algo que é tão nocivo.

- Nocivo? - o homem fez um bico, sem entender.

- É algo que é mau, que prejudica...

O grandão ficou concentrado por alguns instantes, e enfim balançou a cabeça afirmativamente:

- Ah, meu trabaio é isso mesmo - ele hesitou um pouco para seguir, mas naquele espaço sentia-se seguro para falar - E eu não queria mais tê que fazê essas coisa, tem me dado até uns tremilique, umas falta de ar... Mas eu sempre fiz isso na vida, desde moleque. Sempre foi "Ramiro, faz isso! Ramiro, faz aquilo!" E eu sempre obedeci, porque o patrão me deu o que comê e onde morá - a voz tinha um fundo de dor.

Marta respirou fundo para não transparecer a revolta que lhe causava aquela situação, mas não conseguiu evitar o tom crítico em sua fala:

- Você não acha que isso é o mínimo que alguém deveria receber pelo seu trabalho?

- É, ele é mão-de-vaca mesmo - Ramiro concordou de um jeito até inocente.

A terapeuta olhou para o homem com firmeza:

- Não é só sobre dinheiro que a gente tá falando aqui. É sobre dignidade, respeito. Um trabalho como o seu não vai lhe trazer isso, você sabe, né? - o moreno assentiu com a cabeça, e ela continuou - Então voltamos para aquela questão que ficou pendente da sessão anterior. Que outros caminhos você pode buscar? Que outros ofícios você pode aprender? Pensou nisso como combinamos?

- Eu inté pensei, mas não tive tempo de organizá os pensamento, então ainda não sei lhe dá uma resposta - ele coçou a cabeça, nervoso.

- Tudo bem, você tem mais uma semana pra pensar. Espero que na próxima sessão as suas perspectivas estejam mais claras na sua mente - Marta concluiu com um olhar carinhoso.

- Eu não sei o que é esse negócio que a senhora falô, mas eu vô botá meus miolo pra funcioná, vô conversá com o Kevinho, e tentá achá uma saída - o tom era mais de esperança do que de certeza, e ele levantou-se amassando o boné com as mãos - Agradecido, dotora.

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