(A autora recomenda a leitura da fic Menino-homem, antes de prosseguir neste capítulo. Há referências à oneshot mencionada.)
O rapaz estava de volta depois de ter sido espancado e quase morto, passado dias no hospital, depois mais um tempo em recuperação no quarto do namorado. Ele entrou ainda mancando um pouco, mas já livre das muletas e praticamente sem hematomas.
- Ramiro, como você está? Eu soube do que aconteceu, Kelvin me avisou que você não poderia vir por algumas semanas - Marta foi perguntando enquanto o paciente andava devagar até o sofá.
- Ainda tô um poco dolorido, mas to bão. Kevinho cuida tão bem de mim! - o moreno não conseguiu conter um gemido ao finalmente sentar-se.
A terapeuta esperou que ele se acomodasse no sofá, e questionou com o cuidado de sempre:
- Você quer falar sobre a agressão que sofreu?
O rapaz soprou o ar para fora dos pulmões antes de responder, num tom conformado:
- Ah, dotora... eu desafiei o patrão e falhei. E eu fiz tanta coisa errada nessa vida, que uma hora tinha que pagá, né? Tive é sorte de terem me encontrado a tempo, pra eu tê chance de sê feliz com meu Kevinho.
- Você vê como um castigo merecido? Mas nenhum ser humano merece ser espancado, não acha? - ponderou a psicóloga.
- É, eu fui chutado, humilhado, levei soco na cara. E eu só tava querendo fazê a coisa certa, pela primeira veiz. Mas o patrão é ladino por demais, me pegô na estrada. E levou a Aline e a santinha de novo - o homem estava quase chorando, mas respirou fundo e abriu um leve sorriso - Quando eu tava no hospital, todo lanhado e quebrado, consegui dizê onde é o cativero, e a polícia achou a viúva. Então eu consegui fazer uma coisa boa, né?
- Conseguiu sim! Você tinha prometido ao Kelvin que ia trazer as reféns de volta, e mesmo de uma forma tortuosa, alcançou seu objetivo - afirmou Marta.
- O Kevinho disse que eu fui um herói...- ele deu um meio-sorriso emocionado, mas depois baixou os olhos - Imagina, eu, Ramiro Neves, um herói?
- E você não se sente merecedor desse título? - a terapeuta olhava fixamente para ele.
- Fui a vida toda o capanga número um do dotor Antônio. Todo mundo só me via como bandido, que era o que eu era - o moreno respondeu com sua sinceridade cortante.
A psicóloga apoiou um cotovelo na perna, inclinando-se na direção do rapaz:
- Será que era mesmo um bandido? As suas falas não são de alguém com índone ruim. E pelo que me contou, você foi condicionado desde muito jovem a fazer esses "serviços" sem questionar. Apenas cumpria ordens. Já viu um marionete? Aqueles bonecos que ganham movimento por meio de cordas que uma pessoa, acima dele, está guiando... Consegue se ver como esse boneco? Você tinha uma arma na mão, mas quem fazia puxar o gatilho, era a pessoa que tinha as cordas...
Ramiro abriu mais os olhos:
- O patrão, né? Acho que entendi... - ele ficou mais animado - Sabe, dotora, a única vez que eu usei a arma pra mim mesmo, foi quando fui atrás do Kevinho e meti bala nos pneu daquela van. E disso não me arrependo nem um pouco. Não podia dexá o Kevinho ir embora pro estrangero, e eu ficá aqui sozinho.
A terapeuta esboçou um sorriso:
- Então, nesse caso, foi um bom motivo. Até porque vocês estão cada vez mais unidos, né?
O homem relaxou no sofá, largando o corpo para trás, com um olhar enlevado:
- Ah, dotora... Kevinho é a melhor coisa que aconteceu na minha vida. E a coisa mais mais certa que eu fiz foi tê aceitado esse amor. Nóis tamo namorando, a gente dá beijo de boca, uns apertão bem safado, carinho, fica garradinho... - ele hesitou por um instante e endireitou o corpo - mas eu sempre travo pra chegá no finalmente, sabe - fez o gesto com a mão em concha - Sei que ele qué, eu tenho vontade também, mas me assusta e eu não consigo.
Marta perguntou devagar:
- Você já teve esse tipo de bloqueio antes? Ou só com o Kelvin? É sua primeira experiência com outro homem, né?
O moreno franziu a testa:
- Sempre fui macho, tinha inté uma noiva na cidade da minha mãe.
- E com essa noiva, você se sentia travado também?
- A gente não fazia essas coisa, não! Só ia fazê depois de casá - agora ele parecia sem graça.
A psicóloga ainda estava buscando um caminho para incentivá-lo a falar daquele assunto
- Entendi. Além dela, você teve outras experiências?
Ramiro pareceu trancar a respiração ao responder:
- Algumas veiz, mas não era bom. Quem me ensinô as coisa foi a dona Cândida. Ela era dona do Naitandei, o bar das "prima", sabe? E tinha uma amizade com o patrão, acho até que sabia uns segredo dele.
Marta observava cada reação do rapaz, e fez uma pergunta bem pontual:
- Que idade você tinha na primeira vez que esteve com essa Cândida?
Ele ficou com um ar distante enquanto relatava:
- Nem me alembro, era bem menino ainda, nem tava pensando nessas coisa. Mas o patrão disse que ia me levá, que eu tava na idade de conhecê mulhé, e precisava de sê macho. Daí ele me levô pra dona Cândida, e me largô no quarto com ela. E me dexô lá. Eu nem conseguia me mexê, a dona lá é que veio, tirô minha ropa, mexeu lá, sabe? Mas o Ramirão nem respondia. Daí ela me levô pra cama, subiu em cima do meu... do Ramirão. E nem assim eu funcionei.
- E você tem ideia do porque não funcionou?
Ele respondia com uma voz de menino assustado:
- Eu não queria de tá lá, só fui pra obedecê o patrão. Então eu só deixei a dona fazê o serviço dela, mas eu mesmo não consegui. E ela inté que foi boazinha, disse pro patrão que eu dei conta do recado, ele ficô orgulhoso.
- Boazinha, ou queria receber pelo seu trabalho e evitar atrito com seu patrão? - Marta agora foi incisiva.
O homem a encarou com um misto de surpresa e alívio por aquela informação. Nunca tinha conseguido ver Cândida como "boazinha", embora sempre repetisse essa palavra ao contar da situação:
- É, deve de tê sido isso.
A terapeuta ficou em silêncio por alguns instantes, escolhendo as palavras. Mas o necessário precisava ser dito:
- Você consegue ver o quanto foi abusiva essa situação? Você foi despido, tocado nas partes íntimas, forçado a uma relação sexual que não queria nem consentiu.
- Mas eu sô home, e home não pode fugi da raia - Ramiro rebateu com um fio de voz, porque no fundo não acreditava no que estava dizendo.
Marta o encarou com firmeza:.
- Antes de ser homem, vc é um ser humano. Que merece respeito, tanto às suas vontades quanto ao seu corpo.
- Respeito...- ele balbuciou - acho que nunca tive isso na vida, até meu destino cruzar com o do Kevinho.
- É importante você perceber isso, e entender que merece ser respeitado, como qualquer pessoa merece.
- Entendi - o rapaz sorriu levemente, e de repente ficou encabulado - Mas... isso vai me ajudar a fazê aquelas coisa com meu Kevinho?
A psicóloga inclinou-se para ele de novo:
- Ramiro, é bem comum que pessoas que sofreram algum tipo de abuso tenham dificuldade de confiar em novos parceiros. Tenta conversar com o Kelvin sobre o que você passou, sobre seus medos, seus limites... e juntos tentem construir a confiança que você precisa para se entregar a esse amor por completo.
- Tá certo, pececológica. Vô conversá com meu pequetito. Ele merece todo amor do mundo. Nóis dois merece sê feliz, né? - agora o sorriso dele iluminou o rosto inteiro.
- Isso! - a terapeuta também abriu um grande sorriso - Tudo de bom pra vocês.
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Sessões de Ramiro
FanfictionRamiro continua indo à "pececológica" regularmente, e contando eventos importantes, principalmente na sua história com Kelvin. As sessões que a novela não mostrou.