ADUBO

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Dona Mercedes vivia apenas para cuidar das plantas em sua pequena casa de dois cômodos

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Dona Mercedes vivia apenas para cuidar das plantas em sua pequena casa de dois cômodos. Seu quintal era um verdadeiro oásis verde, repleto de canteiros com pés de caroá, pimentas, cactos, babosas, tomateiros, espadas de São Jorge, entre outras plantas que contribuiam com um local cheio de vida. No entanto, por trás dessa aparente serenidade algo a impedia de desfrutar plenamente de cuidar de suas plantas e viver uma vida comum. Dona Mercedes desenvolveu um temor debilitante de lugares abertos e multidões. Ela se via aprisionada em sua própria casa onde andava de um cômodo pro outro mancando de uma perna e evitando ao máximo qualquer contato com o mundo exterior. Sofria de uma síndrome, a agorafobia.
A agorafobia havia se apoderado de Dona Mercedes após a morte de seu marido, João, um pescador experiente e renomado na cidade. Foi em um momento de pesca e correnteza impiedosa do rio, durante um inverno rigoroso, que João saltou da ponte e mergulhou nas águas verdes. No entanto, ele nunca emergiu novamente, desaparecendo na imensidão do Rio Urucubaca. Naquela época, uma lenda que deram nome de o ronco do rio se fortaleceu na pequena cidade, ecoando na consciência da população local, que conhecia a habilidade de João ao nadar e sua familiaridade com as águas mesmo em dias chuvosos. A tragédia afundou a alma de Dona Mercedes em um abismo de luto e medo.
Dona Mercedes encontrava conforto na rotina tranquila que havia criado em sua pequena morada. Na sala que também servia como quarto, ela passava as horas imersa em livros de autoajuda enquanto repousava seu pé na mesa de centro. Cozinhava refeições simples, meticulosamente preparadas, sempre certificando-se de manter um estoque generoso de alimentos para evitar enfrentar a ameaçadora barreira da porta que a separava do mundo exterior.
Enquanto os dias se desenrolavam na vida de Dona Mercedes, seu refúgio pessoal residia no quintal. Ela se dedicava com carinho a cada planta, cuidando de cada folha e raiz. Regar, adubar e podar eram rituais minuciosos que a conectavam de alguma forma ao mundo que não podia mais explorar.
Certo dia, despertou-se no meio da noite e caminhou em direção ao pequeno banheiro, amparando-se em sua perna cansada e sua bengala de madeira retirada de um cajueiro. Após aliviar-se, ela retornou à sua poltrona, seus olhos fixos, através da porta aberta, nas plantas queridas em seu quintal que começavam a murchar lentamente diante de seus olhos. Uma agonia profunda tomou conta de Mercedes, enquanto ela compreendia que, para salvar suas amigas verdes, teria que enfrentar o terrível desafio de sair de casa no meio da noite ou esperar que elas amanhecessem mortas, assim como seu marido no rio.
A ideia de atravessar a porta de entrada para buscar adubo parecia aterrorizante, mesmo que Dona Mercedes tivesse regado cada planta cuidadosamente nos últimos dias. Mas elas necessitavam de mais, precisavam de nutrientes para sobreviver. A cada tentativa de reunir coragem para sair e ir na casa da vizinha mais próxima a alguns metros dali, uma onda de pânico a dominava, fazendo-a recuar. Seu corpo estremecia só de imaginar-se nas ruas da cidade envolvidas pela escuridão noturna.
Depois de muito pensar, Mercedes tomou uma decisão que para ela era a única solução. Foi até seu armário e pegou um facão grande e amolado em suas mãos tremulantes. Olhou para o facão brilhante que segurava, respirou fundo e levou a lâmina até sua própria coxa. O frio do metal encontrou a resistência de sua pele, mas ela não vacilou. Cada movimento era preciso e permeado por uma mistura de dor e esperança, enquanto sua carne cedia diante da pressão da lâmina. O sangue começou a escorrer, pintando um rastro vermelho em sua perna. Mercedes sentiu a agonia percorrer seu corpo, mas manteve-se focada em seu propósito.
Determinada e mancando de uma perna, ela seguiu em direção à porta que dava acesso ao quintal, com a parte decepada de sua coxa firmemente em suas mãos pelancudas e negras. A escuridão da noite envolvia a pequena casa. Ao chegar ao quintal, Dona Mercedes encontrou um local adequado na areia macia perto de algumas babosas e costelas de adão. Com as mãos  suadas e os olhos repletos de dor, ela depositou a parte de sua coxa mutilada ali. O sangue se misturava com a terra e assim, para Dona Mercedes, aquele pedaço de carne serviria como adubo por um tempo.

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