SEXTA FEIRA, 03 DE NOVEMBRO DE 2023
Rafaela pedalava a bicicleta pela cidade. O ar estava frio de enregelar, e seus dedos estavam endurecidos. Ela sorveu os primeiros blocos do sorvete com a língua em meio aos poucos pingos da chuva que ainda caiam. O nariz e a face ardiam. Mal se passara outubro e já se formara diversas tempestades pelo estado. Nenhum lugar da terra parecia mais frio que Manacapuru com a friagem vinda do sul. Em comparação, Manaus era absurdamente tropical.
Todas as lojas pareciam aconchegantes. Pedalando mais devagar, ela olhava uma por uma. Alguns armarinhos ainda tinham lanternas feitas de abóbora, que imitavam cabeças humanas. Outras se haviam adiantado e já se preparavam para o Natal. A única e nova galeria de arte da cidade, "ARCO", parecia especialmente convidativa, sem quaisquer decorações festivas. A tabuleta era suficiente: uma nuvem mágica e um arco e flecha num céu encantado. Luminárias de metal dourado resplandeciam; as pinturas nos quadros pareciam espessas e envolventes. Desejando se aquecer, Rafaela estacionou a bicicleta e entrou.
- Olá - uma voz masculina chamou detrás.
- Oi - respondeu Rafaela. Tentando parecer uma autêntica compradora, franziu o cenho e se pôs a examinar as etiquetas de preço dos quadros e peças artísticas da galeria.
- Avise se precisar de ajuda, tudo bem?
- Pode deixar - disse Rafaela, revistando uma cesta cheia de pequenas pelúcias. Em algum lugar nos fundos da loja, alguém preparava uma infusão de cidra aromatizada com ervas.
- Aceita um pouco de cidra quente? - perguntou a voz.
- Bem, eu não devia... - Rafaela já se sentia culpada por enganar o garoto. Não tinha a menor intenção de comprar alguma coisa.
- Tem certeza? Tá muito frio lá fora.
- O quê? Não entendi.
- Tem certeza que não quer uma xícara? Está muito frio lá fora.
Rafaela riu baixo sozinha. Ergueu os olhos e pela primeira vez viu realmente o dono da galeria. Era Ravi Trindade, o garoto doente, amigo de Mira Nascimento.
- Ah, oi.
- Oi, tudo bem? Eu a conheço. Você estava no carro vermelho na rodoviária, acertei? Bem no dia da minha corrida um tanto ilegal. - o garoto abriu um sorriso eudaimônico.
- Sim. Meu irmão era o motorista.
- Um excelente motorista. Tem certeza de que não gostaria de um pouco de cidra?
- Acho que sim, só um pouquinho. - Rafaela esperou Ravi encher duas canecas marrons. - Sabia que meu irmão também pilota helicópteros e pequenos aviões? Teve ofertas da Total Express. Até hoje não entendo porque ele nunca meteu a cara nisso, quando pergunto ele diz que gosta de ser seu próprio patrão.
- Sem dúvida ele parece competente - comentou Ravi, estendendo-lhe uma caneca.
- Ele se especializou na marinha. Mas já era piloto antes disso. E foi muito valioso pra lá; sabia fazer tudo. Voar, nadar em tempos de desastre, conduzir seus homens. Sempre manteve a cabeça fria durante as manobras.
- Você tem um grande orgulho pelo seu irmão, não é? - Rafaela sentiu a asma se avizinhar de seus brônquios à medida que aguardava pelas perguntas costumeiras: "Por que estão aqui? Tem mais irmãos ou irmãs?" Mas, graças a Deus, as perguntas não vieram. Em vez disso, Ravi estendeu-lhe a mão.
- Não fomos oficialmente apresentados. Sou o Ravi Trindade.
- Sou Rafaela Lira.
- Prazer, dona Rafaela. Fiquei encantado em conhecer você.
Rafaela lançou-lhe um olhar para ver se ele estava sendo falso ou no mínimo forçado por ter uma usado uma referência tão boba mas perspicaz naquela conversa, mas Ravi tinha os olhos cheios de admiração. E isso a corou.
- I'm Wonderstruck - cantou ela, bem afinada e de acordo com o ritmo da música.
- Caramba, você captou!
- Como não né - A seriedade dramática de Rafaela se desfez e deu lugar a sorrisos espontâneos, ela ficara mais confortável - Gosto da Taylor's Version, mas prefiro a música original.
Ravi balançou a cabeça em aprovação e disse:
- De qualquer forma Enchanted é perfeita pro inverno amazônico.
- Ravi é seu nome verdadeiro? Digo... você, bom você... - Rafaela desviou o olhar por uns segundos antes de falar - é que você assume uma postura bem... caricata? Bom, seu cabelo é branco puro, seu estilo é diferente dos outros da nossa idade e poxa, você é um artista e tanto, e... você é muito atraente também.
Ravi ri de canto antes de responder.
- É sim. Arrastei ele por aí minha vida toda. Quando eu tinha 16 experimentei Duke, mas não era eu.
- Não mesmo - concordou Rafaela. - Você é definitivamente Ravi. - Observou-o com aprovação. - Eu realmente só estava reparando nos seus cabelos.
- Meus pobres cabelos - disse Ravi, enrubescendo. - É isso aí, eu os perdi. Eram bem escuros, e agora, veja. Ficaram dessa cor esquisita. Mas eu gosto, a ideia de poder trocar de cabelos como eu quiser é um tanto legal.
- Você pode escurecê-los. - Dicas de beleza eram um de seus melhores talentos.
- O jeito como estão crescendo é tão bonito... meio punk. Certeza que você ficaria maravilhoso com os cabelos escuros novamente.
Nesse momento, soaram os sinos acima da porta. Um bando de mocinhas universitárias entrou. Ravi cumprimentou-as e elas lhe retribuíram a saudação.
Rafaela aninhou-se em seu lugar no canto de um sofá. Ravi serviu cidra às garotas, mas quando terminou de fazê-lo, voltou para sentar-se junto dela. Lado a lado, tomaram a bebida aos golinhos. As moças eram freguesas pagantes, mas mesmo assim Ravi permaneceu sentado com Rafaela. Como se fosse seu amigo. Como se fosse só dela.
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EUDAIMONIA
Roman d'amourO inverno amazônico é a época preferida do jovem pintor Trindade, é a partir dela que ele sustenta um espaço encantador com seus quadros matizados de azul profundo e cenas delirantes, é assim que a galeria ARCO desperta seus apreciadores a sonhos eu...