Estou coberta de serpentina, agitação e suor. O vestidinho justo e repleto de cores, com várias doses de laranja e azul, já está começando a me incomodar, e, se não fosse pela qualidade do tecido, eu já estaria com a roupa mais grudada ainda no corpo, se é que é possível, e molhada pela transpiração que escorre do meu pescoço.
Desde que saí de Portugal, a minha coisa favorita no Brasil é, sem sombra de dúvidas, o período carnavalesco, acompanhado de seu estado frenético cheio de confetes e bolhas de sabão, ao som das marchinhas com bateria.
Amanhã já é a quarta-feira, e os últimos dias foram gastos de forma proveitosa, eu diria. Aliás, eu estaria num bloquinho agora mesmo se não fosse pela minha amiga Tai que me arrastou até aqui, prometendo que essa festa à fantasia, ainda temática de carnaval, seria muito melhor. O cansaço pelos dias anteriores já me tomava, então esperava que não o gastasse à toa numa festinha besta.
Embora eu seja uma fã declarada do carnaval brasileiro e seus deslumbrosos desfiles, o que gosto mesmo dele é a animação. A euforia, a música vibrante, o alvoroço de pessoas bem-humoradas, o samba alegre no pé. É um lugar onde, mesmo cercada de gente desconhecida, sinto-me menos só. É um lugar onde existe a possibilidade de ser feliz.
Depois de viver a vida inteira numa casa que abrigava uma família triste, quieta, infeliz, onde eu parecia invisível, o que menos quero é voltar a esse estado xoxo, capenga, desanimado, sozinho. Porque o que eu estive por muito tempo foi isto: sozinha.
Eu gosto do Brasil. É bem mais acolhedor e animado que Portugal e a minha família de lá.
Por isso, pela batida animada e uma sensação primária de liberdade, o carnaval é bom para mim, e não pelo excesso de beijos que por vezes ocorre, mesmo que eu os aproveite em alguns momentos. Neste momento, porém, não estou nem um pouco a fim de aproveitar desse modo.
Depois de ter dançado um bocado, os pés firmes enquanto pulavam e giravam no chão duro, a exaustão finalmente me alcançou, e precisei parar um minuto para respirar. Deveria estar parecendo uma louca enquanto estava na pista de dança, isso sim, mas não é como se eu ligasse. Eu não ligo para muita coisa.
Levanto-me do batente da escada que sentei para descansar e limpo as mãos suadas nas coxas sob o vestido. Faço o meu caminho até a cozinha da casa desconhecida e abro a geladeira. Meus olhos perscrutam o lugar até que encontram uma garrafa de água. Pego-a e começo beber, matando a minha sede, saciando a vontade sofrida que minha boca queria, não me importando nenhum pouco com as origens do líquido.
Continuo com ela em mãos quando estou voltando à pista, mas algo na porta de entrada detém minha atenção. Ou melhor, alguém. Giro meu rosto na direção e me afasto do contingente de gente para observar melhor.
Um indivíduo está entrando no lugar com uma roupa totalmente branca, a camiseta e a calça que me pergunto onde achou. Pergunto-me, também, que tipo de fantasia é essa. Ele está usando uma máscara, também branca, com furos nos olhos e tinta preta em alguns lugares do material que parece ser papelão.
Um par de orelhas está posto sobre seu cabelo, o que me gera dúvidas sobre o animal, porque, decerto, parece um animal. Talvez um coelho, uma ovelha. Constato o corpo masculino e já sei: homens nunca foram bons em artesanato, muito menos na feitura de orelhas.
Olho sobre os ombros para ver se encontro Tai na multidão e não a acho, então sigo até essa figura branca interessante. Eu não tenho nada a perder; se quero fazer algo, simplesmente faço. A vergonha que me detinha no passado, ou qualquer outra baboseira, já sumiu faz tempo.
— Que tipo de fantasia é essa, gajo? — É o que digo quando paro à sua frente e interrompo seus pés de continuarem, um sorriso maroto nos lábios.
O samba retumba nos meus ouvidos quando encaro os olhos do rapaz, que parecem ligeiramente familiares.
Ele sobe a máscara até o cabelo, e fico surpresa quando as orelhas se mantêm firme no lugar. Minha surpresa se esvai, e é tomada por algo muito maior, quando encaro o rosto do homem parado a uma curta distância de mim.
— Cinthia — fala meu nome, como numa saudação.
Ele me encara com os olhos curiosos. É o carinha estranho que tem aulas de História da Arte junto comigo. Ele até que participa dessas festinhas universitárias, apesar de se manter no seu canto, em todas as vezes, apenas com um copo de água na mão.
— Valentim — devolvo.
— Como vai, portuguesinha?
E, ainda por cima, tem esse lance de me chamar de portuguesinha. Um tanto ridículo!
Reviro os olhos, quase posso senti-los encostarem no meu cérebro.
— Tanto faz. Viraste o coelhinho da Páscoa agora, zé mané, que orelhas são essas?
Ele ri.
— Ah, lá, roubou o ouro do meu país e agora quer roubar minhas orelhinhas também? — O tom divertido escorre da sua voz. — Aí já é demais.
Reviro os olhos. De novo.
Ele continua a falar.
— Eu sou um cordeiro — responde, enfim, à minha primeira pergunta. — O cordeirinho da Páscoa, na verdade. Amanhã começa a quaresma, Cinthia, acho interessante já ter algo relacionado. Sabe, o fim desse período traz consigo a esperança de uma felicidade duradoura e liberdade.
Valentim termina a fala mais sério, e acredito que um pouco de incerteza flutua pelos seus olhos. Um papo de zé mané, deve estar se perguntando se deveria mesmo falar dessas suas conspirações para a portuguesinha aqui. E eu gostaria de ignorar, mas... a menção básica de felicidade e liberdade acende algo em mim.
Mesmo que nada me prenda declaradamente, costumo me sentir presa a mim mesma, às minhas próprias chatices e ruindades. Sempre cri que todos eram assim, vivendo momentos de felicidades e sabendo que é inviável ter uma felicidade duradoura. Ele é mesmo um zé mané estranho, e não me passa despercebido o rebate que faz da minha suposição sobre coelhinho da Páscoa.
Um aperto no meu peito se faz presente, enquanto ainda tenho a garrafa nas mãos. Penso em dar um gole para amenizar essa sensação, como se ela pudesse me purificar.
Então, mesmo contrariada, instigo Valentim a continuar seus devaneios.
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Cordeiro alvo no carnaval de Cinthia
Ficción GeneralOnde Cinthia fica curiosa ao notar uma fantasia peculiar na última noite de carnaval. Onde Valentim conta a história de um cordeiro alvo.