Encontramo-nos no apartamento perto da universidade que dividimos, já mais sóbrias. O cheiro de ar puro permeia o ambiente, enquanto eu e Tai estamos sentadas no sofá falando sobre a noite, ambas de banho tomado e sem cores à beça nos serpenteando.
— Você comeu alguma coisa diferente? — Tai questiona a respeito da minha falta de bem-estar.
— Deve ter sido a água não tão confiável que peguei naquela festa — minto novamente, mas não é uma mentira ao todo, afinal, aquela água não era mesmo confiável.
— Que deslize, hein, Cinthia. E, hm... quem era aquele cara que você deu tchau?
— Um chato da faculdade. Ele fala um monte de baboseiras.
Ela ri.
— Que tipo de baboseiras?
— Tipo cordeiros que trazem esperança — falo e espero pela sua reação diante das aleatoriedades que Valentim conta.
Ela repete o riso fraco.
— Legal — declara. Pelo seu semblante, não consigo identificar se está feliz, triste ou indiferente com a ideia.
— Legal, Tai? O mundo tá perdido mesmo!
Continuamos por algum tempo batendo papo fora neste último dia de carnaval. Ela me pergunta, em certo momento, se eu teria trocado um bloquinho pela festa se soubesse o que me esperava. Neguei, mesmo que bem lá no fundo eu me repreenda por achar que a história cordeirística do zé mané tenha feito valer a pena. Dormi pensando na fantasia do cordeiro alvo que ele quis projetar, até nas orelhas duvidosas do animal.
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Hoje é sexta-feira pós-carnaval, e a aula de História da Arte acabou já faz alguns minutos. O vento bate na bancada de pedra em que estou apoiada, e posso prever um temporal pelas nuvens escuras e carregadas. Meus livros estão pressionados contra o peito, e estou brincando com as páginas enquanto espero o tempo passar. A vida universitária é bem expressa neste corredor em que estou, estudantes correndo para cá, e para lá.
Então, Valentim sai da sala. E eu preciso saber de sua história — não tão boba. Mais uma vez, não me detenho: sigo o lema "se quero fazer algo, simplesmente faço".
— Oi — chamo quando ele sai da porta. O homem se vira e me encara.
— Tá querendo ouvir outra narração, é, portuguesinha?
Idiota.
Reviro os olhos, percebi que faço muito isso diante dele.
— Conta mais do cordeirinho. O que irias dizer quando foste interrompido por Tainara?
Ele suspira e mexe na cabeleira bagunçada.
— Me recorde disso — diz, sério.
— Talvez eu não devesse ter ido àquela festa na terça, perdi o feriado e fiquei pensando numa falsa esperança. — Bufo. — Tu irias negar o meu "seria bom se fosse verdade", como se o caso dos garotos desnorteados com o cordeiro fosse real, Valentim?
— Sim.
Sua resposta é simplista, e seus olhos estão fixos nos meus. Encaramo-nos em mudez, até que rompo-a, depois de perceber a sutil covinha em sua bochecha direita, enquanto alguns universitários ainda andam ligeiros e esbarram no meu ombro. Ao mesmo tempo que são incômodos esses esbarrões, eles me deixam um pouco contente por saber que estou no meio de tanta gente, como num ambiente legal, numa pequena amostra das pessoas do carnaval.
— Por quê? — É tudo o que digo.
— A história é verdade, Cinthia. Eu era um desses garotinhos manchados que foi limpo pelo sacrifício do cordeiro.
Endoidou de vez, só pode! Apesar da coisa miraculosa que diz, não consigo digerir como mentira.
— És o garotinho — constato. — E quem é o cordeiro?
Sua face é um tanto quanto meticulosa.
— Jesus Cristo.
O nome eriça meus pelinhos do corpo e deixa minha audição em alerta. Não sei o que pensar, nem falar. O mundo para completamente por um instante, eu estou morta, inerte, indiferente à minha volta. No outro, um sentimento que não sei o que é arde no meu peito, como se pudesse me consumir por inteiro.
— Tudo bem. — Meu cérebro consegue formular a frase. — Eu vou indo, Valentim.
Ele sorri.
— Jesus é a esperança, que me libertou, onde eu encontrei a alegria.
Curvo a cabeça em compreensão.
Ele segue seu caminho, e eu vou para o bebedouro. Encho minha garrafa por completo e bebo até a metade.
Tenho aula de História Contemporânea agora, mas estou decidida a faltar.
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Estou no ônibus, a passeio, e olho através da janelinha ao lado do assento que consegui. É interessante ver a rua cheia de pessoas e pensar na singularidade desconhecida, mas existente, de cada um; é interessante ver os carros, baixos pela minha visão, cada um num rumo que não se sabe, numa motivação que também se desconhece; interessante ver as árvores e plantinhas miúdas no asfalto, cada uma em sua beleza única; interessante ver o céu, nublado, e as gotas de chuva que escorrem pela pequena janela. Isso é bom.
Algo ainda agita e balança meu coração quando escuto o som da notificação do celular. Leio e releio umas dez vezes a mensagem. Como ele conseguiu meu número?
"Número desconhecido: Oi, portuguesinha! Aceita um convite no domingo? Que tal uma visita à minha igreja?"
Eu aceito.
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Cordeiro alvo no carnaval de Cinthia
Ficção GeralOnde Cinthia fica curiosa ao notar uma fantasia peculiar na última noite de carnaval. Onde Valentim conta a história de um cordeiro alvo.