Festa - Dois

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— Fala mais sobre isso — peço, apesar de tudo, e quero me bater na mesma hora. Como podes, Cinthia, tu dares abertura aos papos sem pé nem cabeça do Valentim, sobre quaresma, cordeiro e esperança?

Mas não volto atrás.

— Posso contar a história? — Um brilho reluz da sua face.

Agora pronto! Ele também tem esse lance de contar umas historinhas narrativas e esperar que algumas pessoas o ouçam. Nem no carnaval esse menino se aquieta, com o som alto atrás de nós. É por pouco que não temos que gritar para sermos ouvidos.

— Sim. Porém, eu já sei: isso tudo é balela, né?

Ele só dá um riso fraco, sem me responder. Pareço uma palhaça, por acaso?

— Vamos pro jardim.

Eu gostaria de negar, voltar às minhas danças mirabolantes, gastar ainda mais meu vestidinho colorido e colado, sentir os confetes sobre o meu corpo, viver a folia que tanto amo; mas tudo o que faço é segui-lo.

Paramos erguidos sobre a grama molhada e ficamos acomodados numa pequena mureta. É refrescante sentir a brisa fria que bate no meu pescoço e nos cabelos grudados na testa.

— Existia um garotinho, — Valentim começa, ansioso, intercalando o olhar entre mim e o céu carente de estrelas — estava perdido e sem rumo. Ele chorava porque tinha pisado na bola, errado feio, e o preço para isso era a morte. E o garoto não estava sozinho, havia muitos outros na mesma situação, muitos que haviam sido manchados. A surpresa, então, foi que um cordeiro subiu o monte, o lugar onde eles seriam executados.

Por que eu acho que já tenho uma ideia do rumo dessa história? E por que ela parece dar um ânimo ao meu coração, que sempre esteve sozinho?

Ele continua.

— O cordeiro era branquíssimo, mais que até mesmo a neve pura, e só por isso pôde dar sua vida em prol de todos eles, porque ele era o único que não estava manchado. O cordeiro viveu de forma tão exímia que foi o suficiente para salvar todos os garotinhos perdidos, que acabaram por se tornar tão brancos como o cordeirinho quando ele morreu. Porém, quem estava manchado de sangue agora era o cordeiro. Mas, como eu disse, ele não havia se manchado nenhuma vez em vida, foi alguém impecável, sábio, amoroso e bondoso.

— Isso não é justo! O que aconteceu com o animalzinho? — Lá vou eu me meter em história de criança, mas não consigo evitar.

— O cordeiro era muito bom e poderoso. Em esplendor, reviveu alguns dias depois da sua morte, e não havia mais nenhuma mancha nele. Ele estava branquíssimo de novo, mais do que antes, chegava a brilhar, e nada poderia pará-lo.

Digiro a história na minha cabeça uns instantes. Um espaço de esperança, crente nas felicidade e liberdade que Valentim falou, enche-se no meu peito, mesmo que eu ainda não tenha identificado onde elas se encontram.

— Felicidade e liberdade. Onde estão, zé mané?

Ele sorri, gentil.

— A morte do cordeiro permitiu que o garotinho tornasse-se livre das manchas que o acorrentavam, encontrando em sua liberdade a verdadeira felicidade, desfrutando e amando o cordeiro que deu isso a ele.

Passa-se um momento de silêncio, suas pupilas percorrendo meu rosto à busca de algo.

— O que achou, portuguesinha?

Está tendo a festa lá dentro, cercada de animação, no estilo brasileiro, samba à solta, carnaval vivo. E eu estou aqui, ao lado de Valentim, ouvindo uma de suas narrativas infantis que talvez já não ache tão bestas assim. É possível que uma história cheia de besteiras e fantasias encha meu coração de esperança?

Na verdade, não, até porque é tudo invenção da cabeça imaginativa desse homem estranho.

Aperto nos dedos a garrafa que seguro, ouvindo o plástico se movimentar enquanto tomo bons goles e respiro fundo.

— Quem é o garotinho? — É a minha pergunta, encarando-o nos olhos profundamente, o sotaque europeu reverberando.

— Eu. Mas pode ser você, Cinthia. Ou qualquer um desta festa. Pode escolher. — Pisca daquele jeito galanteador, enquanto eu rio fraco, apesar de confusa com o que diz.

— Seria bom se fosse verdade.

Ele estava prestes a falar algo, eu percebo, mas meu telefone, preso em alguma parte da roupa, toca na mesma hora e o interrompe. Por que acho que iria negar o que eu disse? Encaro o nome no visor da tela e tenho quase certeza de que dou um suspiro de alívio. Por algum motivo, também, quero fugir dessa conversa doida, ao mesmo tempo íntima demais, com esse menino doido.

Levanto o celular para o ouvido enquanto Valentim me observa quieto e atendo.

— Cinthia! — Sua voz soa agitada. — Onde você tá? Não me diga que já foi embora sem mim.

Ela fala como se eu fosse uma criancinha, mesmo que eu me considere mais responsável que a sujeita.

— Oi, Tai, estou bem. — De repente, uma ideia surge na minha mente. — Podes dar um pulo aqui no jardim?

Não demora para que Tai entre afobada no lugar onde estou, quase esbarrando nos vasinhos de flores que preenchem algumas partes daqui. Todos que estavam no jardim parecem parar suas vidas um momentinho diante da energia caótica da minha amiga.

Seus olhos estão meio arregalados, e ela procura algo com eles. Rapidamente me encontra e começa a dar os passos firmes até mim, mas chego nela antes, distanciando-me um pouco do rapaz que se mantém encostado na mureta.

— O que foi? — pergunta.

— Podemos ir embora? Não estou me sentindo muito bem — minto. E aí está a ideia.

Ela meneia a cabeça em afirmação.

— Sério? Tudo bem.

E, em cinco segundos, Tai se curva em direção ao chão e o vômito foge da sua garganta. O verde da grama num instante adquire uma tonalidade diferente, e alguns se distanciam da cena.

— Meu Deus, Tainara! — exclamo, reproduzindo uma careta. — Estás pior do que eu.

— Vamos sair logo daqui.

Assinto, girando a cabeça em seguida e olhando o rosto do homem fantasiado de "cordeirinho da Páscoa". Um quê de curiosidade e preocupação toma sua feição.

— A gente se fala, zé mané.

Ele dá um passo à frente.

— Eu levo vocês — oferece.

— Não precisa — recuso, e meus pés se movem para longe dali, acelerados, o braço da minha amiga agarrado ao meu.

Que belo jeito de gastar, e perder, a melhor época do ano!

Cordeiro alvo no carnaval de CinthiaOnde histórias criam vida. Descubra agora