Conto unido: A canção da liberdade

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Havia se passado da hora nona há muito tempo. Eu sabia disso porque minhas pestanas pareciam baldes de ferro, e meus ossos começavam a cantar uma música estranha que somente no ponto mais alto da madrugada eu poderia ouvir. Mas o galo ainda não tinha cantado. Eu precisava ficar atenta, alerta como uma coruja na penumbra da noite. Logo logo, a alvorada e o galo dariam o ar da graça. Meus olhos queriam cair em tentação, mas eles sabiam que não podiam. Eu precisava ficar alerta, sinhá podia acordar a qualquer momento.

A noite é estranha, mais gelada que o dia. As feridas nos pés doem mais à noite. Sinhá podia acordar a qualquer momento. Pela manhã, eu colhi algumas rosas que ela tanto apreciava. Ela me disse uma vez que o cheiro dos currais a incomodava, e eu também não gostava do cheiro dos currais. Eu não gostava de ir para lá. Preferia ficar aqui, cuidando da minha sinhá. Ela podia acordar a qualquer momento. Preferia ficar aqui, sentada no chão ao lado da cama da sinhá, do que voltar para lá. Prefiro não reclamar, não piscar, não respirar, não falar, não andar. Prefiro a minha doce sinhá a voltar para lá.

O galo canta, a noite clareia, e há barulho na cama. Preciso cuidar da minha sinhá, que está de pijama.

O dia passa rápido e devagar, um dia como qualquer outro dia, um dia sem palavras, um dia de agulhas espetando meus dedos. Eu tracei a linha pelas meias da sinhá, ela queria bordados de flores amarelas, não sei que flores eram aquelas, não podia saber, só tinha que tecer, era isso que a senhora da casa dizia. "Você tem sorte de poder cuidar da minha menina. Suas mãos não enchem de calos, não leva sol na pele, não vai ficar escurecida, terá sempre a pele mulata enquanto obedecer. Você tem que agradecer" a senhora sempre falava essas palavras, que eu tinha que agradecer por ter a pele mais clara. Não levava chicotadas. Já era o crepúsculo vespertino quando eu ainda tecia e bordava rosas e flores, um frio subiu pelo meu ventre. Sinhá estava deslizando como um cisne gracioso em frente a um grande espelho. Madeixas castanhas lhe caíam como um véu. Um véu de noiva. Certamente, em alguns poucos anos ela estará usando um de verdade. A senhora da casa sempre vem ao quarto contando sobre a tradição de família. Eu vi o véu uma vez. Parecia como as luzes brilhantes que entram pela janela. Era perfeito. Com certeza a sinhá ficará perfeita. A sinhá é linda, com sua pele alva como o leite, seus olhos esverdeados e até mesmo sua marca no pescoço. Como a minha. É, acho que a convivência nos tornou parecidas demais, desde os olhos verdes até a marca no pescoço, exatamente no mesmo lugar. Quando éramos menores, eu não podia ficar muito perto dela, mas ela sempre vinha até mim com suas bonecas. A senhora não gostava nem um pouco e quem recebia a punição era eu. Mas valia a pena brincar com minha sinhá era a melhor parte da minha triste vida. Uma tarde, em que ela fugiu da aula de etiquetas, estávamos escondidas quando ela disse que estava cansada de me chamar de Mulatinha. "Andressa. A partir de hoje você será Andressa. Minha criada Andressa." Sinhá me deu nome. Porque na verdade, eu não lembro nada sobre mim. Não sei nada sobre meu passado, eu não era nada, eu não era ninguém. Sinhá me deu vida. Minha doce sinhá será uma bela noiva, eu tenho certeza. Está quase na idade de se tornar uma senhora como sua mãe. Minha sinhá será uma boa senhora. Me pergunto se vou junto a ela ou vou continuar aqui, sentada em cócoras. Uma vez ouvi na porta meus senhores falando sobre mim. Eles ainda me chamam de mulatinha, mas eu ganhei nome. Sou Andressa. Andressa da Silva. Pelo o que soube da prosa, eu e sinhá nascemos no mesmo ano. Não soube o que isso significava na hora, mas descobri que eu e sinhá chegamos a esse mundo na mesma época. Até pouco tempo atrás eu não sabia que existia. Mas sinhá me deu nome e disse que eu existo. Logo minha linda sinhá vai sair daqui vestida de branco e será que eu vou com ela ou fico aqui? Sinhá é boa, certo que vai me levar com ela. Mas e se não me levar? Como vou viver? Sem a sinhá eu...

"Eu sou uma sombra, Sempre perseguindo, Sempre despercebida. Nunca vista, quase invisível. Quando me procuram, Me encontram. Mas não sou visível.

Como sombra, eu sigo. Como sombra, não ligo. Se me deixam, Se me rejeitam. Sou quase invisível. Será que existo?

Ponto FinalOnde histórias criam vida. Descubra agora