Capítulo Quatro

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TENHO ALGUMAS QUESTÕES SOBRE BENJAMIN que eu não consegui tirar da cabeça: ele não usou nenhuma palavra em inglês enquanto fala comigo, apenas "yes, darling", mas é muito simples, conseguiu ser até gentil comigo durante todo o tempo. Porém há algo que realmente não consigo deixar de lado, o fato da maneira dá como ele falou sobre uma pessoa que nem ao menos viu na vida, consigo entender se já a tiver visto ela, mas caramba, foram apenas palavras de uma professora – que foi uma babaca sem motivo algum. Se a garota é tão ruim, por que sugerir uma parceria?

Eu não deveria me sentir ofendida com tais palavras, claro que ele não estava falando sobre mim. Sou perfeccionista, mas não quero tudo do meu jeito e eu gosto de pessoas, sou apenas muito seletiva com meu grupo de convívio.

Vovó está muito ocupada na cozinha preparando o almoço, talvez a Cornélia original seja tudo aquilo que não consigo ser. Ter sido criada por ela me preparou para muitas coisas, mas uma delas não foi a socialização, não que seja sua culpa, tenho essa tendência a me isolar um pouco e ela é um pouco do meu casco de proteção, a pessoa que eu sei que não me abandonaria por nada.

Ela com certeza odiaria o Benjamin, não há um pingo de paciência para gente arrogante em seu corpo, apenas para mim quando não estou nos meus melhores dias, mas nunca arrogante com ela.

Cornélia original consegue ser a pessoa mais gentil que existe mesmo após tudo que lhe aconteceu no passado. Talvez casar-se quando muito jovem com um homem que desprezava apenas para agradar seus pais, ter tido dois filhos que se tornaram seres humanos deploráveis, poderia construir uma pessoa horrível. Mas não essa mulher.

Mesmo com um marido e seu pai a proibindo de trabalhar, ela foi em frente e construiu seu próprio caminho, escondida do marido, em uma escola pequena no interior de Minas Gerais. Até que em 1978 eles decidiram se mudar para Brasília – eles sendo meu avô e as vozes da sua cabeça. Ele a permitiu trabalhar quando se mudaram, já tinham dois filhos que frequentavam a escola e eram grandes, ele tinha dinheiro o suficiente para pagar alguém para limpar a casa e cuidar das crianças, então Cornélia pode trabalhar para passar seu tempo. Entretanto, não eram bons tempos para ser professor, ou levantar as bandeiras que ela levantava, para falar a verdade, eram tempos impossíveis de ser alguém oposto ao que estava acontecendo no Brasil na época.

Quando seus filhos tinham 10 anos de idade, Cornélia foi literalmente presa por se negar a bater em uma criança com a palmatória e chamou o governo de fascista, talvez não tenha sido a melhor das escolhas de palavras para o ambiente em que estava, apesar de não estar errada. Ficou cerca três meses presa, o suficiente para seu marido fazer uma lavagem cerebral em seus filhos, chamando-a de anti nacionalista, chamara de vergonha para família.

Quando me tornei mais velha ela me contou que seu falecido marido não deveria ter aceitado se casar com uma vagabunda qualquer que destruíra sua imagem, uma gigantesca piada era aquele cara. Ela ainda ficou anos casada com ele, vendo diversas amantes entrando e saindo de sua casa, apenas para tentar aproximar-se de seus filhos, o não funcionou já que ambos passaram sua adolescência desmerecendo a mãe e toda sua luta contra violência dentro das escolas.

Quando o regime militar deixou de estar presente no Brasil, ela fez o que pode para voltar a lecionar, aos 54 entrou para o curso de pedagogia que se tornou obrigatório para ter licença na educação e saiu de casa, divorciando-se da pior pessoa que conhecera e nunca se casou novamente, alguns amantes ao longo dos anos, como ela mesma diz "estou velha e não morta".

Meu avô faleceu aos 78, de câncer. Depois dos 14 não quis ter nenhuma informação sobre sua existência e como estava, creio eu que se casou mais três vezes após a vovó, bom, ele perdeu muito, ela só fez ganhar mais.

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