☆*:.。𝐂𝐚𝐩í𝐭𝐮𝐥𝐨 𝐈 。.:*☆

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No vasto domínio das aflições humanas, poucas são tão insidiosas quanto o tédio.

Não é apenas o aborrecimento que castiga com enfermidade a mente ociosa, o mal maior é o vazio de propósito ao se perceber desprovido de motivos para ocupar-se. O tédio é o cardápio do diabo, e o ócio sua mesa de jantar.

Havia, dentre os infortúnios que Vincent desprezava, pouquíssimos que lhe inspiravam maior repulsa do que o tédio e entre eles, raros eram os que não tangenciavam larvas e tempestades. Seus cabelos escuros ondulavam com a brisa fresca que invadia a janela semiaberta, trazendo o aroma da terra úmida e dos campos recém-arados, um alívio momentâneo em comparação ao vagão abafado que ameaçava sufocá-lo. A paisagem que se estendia até onde a vista alcançava parecia uma pintura embaçada, resultado da velocidade da locomotiva e de sua falta de atenção aos detalhes ao seu redor. Seus olhos sem foco refletiam o verde exuberante das colinas que se misturava indistintamente com o azul do céu, enquanto os contornos das fazendas e vilarejos aqui e ali se desvaneciam numa massa distorcida. Criado na cidade e educado com o elevado grau esperado de um lorde, ele se via agora em um ambiente completamente diferente. Sua alma inquieta ansiava por algo mais interessante para se entreter, já que as conversas com sua tia Amélia, que o criara como seu próprio filho, haviam exaurido os limites das banalidades.

Seu amigo James costumava brincar que Vincent era como uma besta insaciável, sempre em busca de sua próxima presa, seja ela uma donzela encantadora ou apenas um alvo para perturbar. No entanto, dentro do trem em que estava enclausurado, já se passavam longas e tediosas 10 horas desde que partiram de Londres, e a ausência de distrações começava a pesar sobre ele, como era previsível para quem conhecia sua natureza. Os barulhos incessantes da locomotiva e o choro incessante de uma criança no vagão ao lado invadiam seus ouvidos, perturbando sua tentativa falha de encontrar algum descanso nos braços do sono. Para um homem acostumado com a agitação das festas e salões da cidade, bem como as viagens ostensivas, a monotonia e os desconfortos do trajeto se tornavam cada vez mais insuportáveis.

À sua frente, Dominic, seu irmão, concentrava-se nas páginas de um livro, bebericando seu chá numa serenidade invejável, enquanto James se encontrava imerso em um frenesi criativo, desenhando paisagens de colinas e rios sinuosos que se estendiam para além da janela. Parecia que faltavam alguns parafusos a este último quando se entregava a esses momentos, como se como se tivesse atravessado o limiar entre a realidade concreta e o seu mundo particular, onde só existiam ele e seus rabiscos. Desde que Vincent se lembrava - e essas memórias de amizade remontavam da infância - o loiro sempre fora assim. Na época da faculdade, quando por puro acaso dividiram o mesmo dormitório, essa essa realidade paralela se tornou ainda mais evidente em sua manifestação. Era quase parte daquela rotina exaustiva adentrar o quarto e, ao dirigir o olhar para a metade oposta, encontrar o espaço destinado a James transformado em um cenário caótico, onde tintas, pincéis e esboços se espalhavam pelo chão como vestígios pós-apocalípticos de um furacão criativo. Também não era incomum que até mesmo James se misturasse entre os escombros de sua criação, jogado no chão, adormecido entre seus devaneios ou tentando enxergar o mundo de ângulos diferentes: sentado, deitado, de cabeça para baixo - e esquecendo, não raras vezes, dos horários das aulas de seu curso de Literatura.

Aos olhos de qualquer estranho que não fosse privilegiado o bastante para integrar o seleto círculo social de amigos e familiares, o comportamento do artista poderia facilmente ser interpretado como um lapso de insanidade. No entanto, para aqueles que compartilhavam de sua intimidade, ficava claro que esses momentos de aparente excentricidade eram o terreno de criações verdadeiramente geniais. As ideias e conselhos criativos que surgiam dessas epifanias não apenas enriqueciam a vida dos Campbell, mas também se revelavam como suporte em todas as áreas, transformando-o em um amigo confiável. James era, basicamente, um membro agregado da família. Cansado de divagar, Vincent tentou dar o que fazer às suas mãos, tamborilando os dedos na mesinha à sua frente de maneira frenética.

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