Eu não fazia ideia do que estava acontecendo.
Num minuto um carro iria me atingir com força e a única coisa que eu podia enxergar era a luz forte de seus faróis. No outro, a sensação que arrepiava os pelos dos meus braços era semelhante a despencar em queda livre e, quando pude notar, estava pressionando o peito de um macho alado.
Meu nariz estava sangrando, mas não era nada que me preocupasse, minha testa provavelmente tinha um corte que me deixaria com uma cicatriz horrível e a adrenalina que subia por meu corpo me impedia de ter uma paralisia devido o pânico.
— Você precisa se acalmar.
Era óbvio que eu simplesmente poderia ter visto toda aquela situação e corrido na direção oposta, afinal, qualquer ser humano minimamente consciente e com algum pingo de autopreservação o teria feito. No entanto, meu juramento médico entrava em conflito com qualquer potencial fuga que eu pudesse planejar.
"Eu prometo solenemente consagrar minha vida ao serviço da humanidade;"
Minha voz estava rouca e eu duvidava muito que em circunstâncias normais ele teria me ouvido, mas eu sabia que sim pela maneira que suas orelhas pontudas estavam reagindo ao barulho. Meu peito subia e descia numa velocidade absurda, nada do que eu fazia era capaz de controlar minha própria respiração — talvez fosse levemente contraditório pedir para que o macho se acalmasse.
Então não sabia se o pedido havia sido murmurado para mim ou para ele.
Observei o cenário desastroso que se desenrolava ao nosso redor totalmente petrificada: meus olhos humanos não conseguiam acompanhar com clareza a velocidade que aquelas criaturas se movimentavam, era quase como um borrão negro e com esforço eu era capaz de ver o vislumbre de algo brilhante.
Espadas.
— Tudo bem. — Balancei a cabeça, sentindo toda aquela epifânia misturada à adrenalina me contaminando, deixando-me inerte a qualquer dor e ligando o hiperfoco que me fez capaz de concentrar-me no macho. — Escute, eu preciso que pressione isso, entendeu?
O macho revirou os olhos, num estado semi consciente, mas não me respondeu. Avaliei a situação com pesar, havia muito sangue. A flecha fincada em seu peito sugeria fortemente uma hemorragia interna. Ele suava frio e era óbvia sua luta para se manter consciente.
Eu precisava de uma sala de cirurgia se quisesse mantê-lo vivo.
— Ei, ei, ei! — Chamei alto, sem deixar de pressionar o ferimento. — Não desmaie, me ouviu? Eu só preciso...
Olhei ao redor, sabendo que comigo eu tinha somente minha maleta médica e o cooler que armazenava as bolsas de sangue que eu deveria levar á barca antes de quase ser atropelada. Ou talvez eu tivesse sido?
Praguejei sabendo que era uma vida perdida. Inalei profundamente, buscando o olhar do macho em desespero, desistência, pesar. Os olhos incrivelmente verdes encontraram os meus num instante de consciência e jurei ter visto algo semelhante a gratidão, no entanto, não pude confirmar ou tive tempo para sentir o peso daquela morte. No instante em que abri a boca, numa tentativa de murmurar um sinto muito, fui lançada fortemente para longe.
O tempo pareceu congelar por milésimos de segundos, minha audição tornou-se abafada e a forma brusca que fui jogada para trás me impediu de proteger minha cabeça corretamente. O impacto me fez gemer, minhas costelas protestando no instante em que tocaram o chão e a maneira como bati a cabeça definitivamente deixaria uma concussão.
Em meio a desorientação e do caos que parecia crescer, só consegui apertar fortemente a fivela que deixava a maleta e o cooler agarrados em mim, piscando lentamente e controlando o ataque de tosse que a quantidade de poeira levantada gerou.
— Curandeiros! Curandeiros para o Norte!
Pisquei outras vezes, ainda confusa demais para ter uma linha de raciocínio completo. Sentei devagar, levando minha mão ao cenho e franzindo-o ao notar o líquido vermelho rubro em meus dedos. Ergui a cabeça e vi, ao longe e de maneira embaçada, tendas semelhantes às que passei tanto tempo no Afeganistão.
Olhei novamente para o macho alado, a alguns metros de distância, sabendo que sua vida havia sido ceifada. Me ergui cambaleando e apertando fortemente meus itens, dividida entre dar meia volta e correr. Correr para longe e só parar quando os sussurros daquela carnificina sumirem dos meus ouvidos.
Mas eu era médica.
Então olhei para frente e corri.
Corri em direção as tendas.
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MEDICINE | acotar (EM HIATUS)
FanfictionOnde a vida de uma humana muda repentinamente e sem explicações plausíveis. Ou Onde a medicina em Prythian ganha outra perspectiva com a chegada de uma médica cirurgiã.