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Quando realizei meu primeiro procedimento cirúrgico a sensação foi totalmente contrária a tudo aquilo que idealizei durante a faculdade. Sim, havia a ansiedade, o êxtase, a euforia em finalmente sair da teoria, mas também havia medo e insegurança.

Principalmente porque a pessoa naquela mesa de cirurgia era um dos meus colegas de internato.

Eu não sabia, naquela época, mas descobri não muito tempo depois que lidar com vidas era mais complexo do que os livros mostravam. Mais complicado, intenso e raramente gratificante, do que somos ensinados.

Me pergunto se eu seguiria o mesmo caminho se soubesse de tudo isso antes.

As coisas desandaram rápido demais para que eu pudesse acompanhar. Rápido demais até mesmo para que eu pudesse lutar ou me defender: no minuto em que eu me permiti sentar, fui puxada tão bruscamente que somente notei que o alvoroço da guerra havia acabado quando me tiraram da tenda.

O tempo se perdeu em um nevoeiro, deixando-me entorpecida, como nos plantões exaustivos no hospital depois de grandes acidentes, ou nos intermináveis dias transformados em semanas no Afeganistão. Meus ouvidos zuniam há horas, não sabia exatamente quantas pessoas eu havia prestado ajuda e perdi as contas de quantos deles praguejaram ao ver uma humana nojenta — segundo suas próprias palavras — auxiliando.

Não me importei. Quantos pacientes preconceituosos já tinha atendido? A novidade era o repúdio à minha raça, que normalmente se autodesprezava.

Nem mesmo consegui grunhir ao ter os braços cada vez mais apertados contra minhas costas. Conforme eu tentava me manter de pé enquanto diante do inevitável, observei o desastre se estender à distância. Havia fumaça e centenas de corpos ao longe, era quase noite e os gemidos e choros ainda persistiam, aumentando a sensação de angústia e pavor que começava a crescer dentro do meu peito.

Quando percebi, fui jogada dentro de outra tenda e praticamente tive o rosto prensado contra o chão de terra. O estalo do meu maxilar se misturou ao som da minha própria respiração perante a força que era colocada sob mim.

Passos ressoaram à minha frente, e contive o tremor que percorreu minha espinha ao ser invadida por um odor nauseante. Senti a presença à minha frente, enquanto o silêncio ao redor parecia ensurdecedor, abafado apenas pelo ritmo frenético dos meus batimentos cardíacos.

Sabia que podiam ouvir até mesmo o pulsar do meu coração.

— Como entrou em meu acampamento, bruxa? — A voz cortante perfurava o ar, impregnada de ódio e repulsa.

Um riso amargo se formava em meus lábios, mas era abafado pela pressão implacável do bruto que me mantinha imobilizada, sua presença emanando violência e desdém. Notavelmente aquilo deveria ser uma gigantesca piada de mau gosto: não bastava estar em um lugar desconhecido, afastado de tecnologia descente e outros seres humanos, mas também repleto de criaturas que ainda ainda temiam a medicina e alimentavam o ódio por bruxas.

— O que é tudo isso, Devlon? — Uma terceira voz irrompeu, rompendo o silêncio carregado com uma nota de curiosidade sombria.

Percebo mais um movimento à minha frente, mas minha visão ainda está turva, incapaz de distinguir detalhes claros. Um gesto, e sinto o aperto ao meu redor se dissipar, o bruto que me segurava desaparece em um movimento rápido e quando noto não está mais na tenda, como se temesse desafiar a autoridade do outro macho, deixando-nos a sós.

O silêncio se instala, apenas quebrado pela respiração pesada de Devlon e pelo eco do meu coração acelerado. Eu me levanto lentamente, sentindo a tensão no ar enquanto aguardo sua próxima movimentação.

MEDICINE | acotar (EM HIATUS)Onde histórias criam vida. Descubra agora