III

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Para mim, a chuva é um sinal

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Para mim, a chuva é um sinal.

Não me importa todo o papo de “o ciclo d’água” ou “lágrimas de Deus”. A chuva é e sempre será um aviso.

É claro que, como todo aviso, ele é indireto. Podemos dizer que a chuva só aparece quando é preciso. Está triste? Ótimo, o céu vem chorar com você. Está feliz? A água te permitirá crescer. Está confuso? Vá a uma janela e observe.

Eu já tentei contar as gotas. Obviamente, é impossível, mas me chama tanta atenção e me rouba o foco que o tempo parece correr. E, quando o tempo corre, não há tempo para pensar; seja qualquer coisa, mas, acima de tudo, sua dor. Tempo vago nos faz sofrer mais.

Acho que tempo é o que tenho de sobra.

Observo a janela, deslizando a ponta do dedo indicador sobre o corte em minha coxa. Talvez, se ela tivesse vindo antes, eu não teria feito isso. Talvez o aviso de hoje seja persistência.

Encaro o céu, erguendo uma sobrancelha, como se estivesse a questionando de verdade. Ao longe, um brilho e, segundos depois, o estrondo. Sorrio. Deve ser um sim.
Sem exceções, sempre que saio na chuva, não levo guarda-chuva. É uma coisa minha, sempre acho que dá boa sorte ser banhada pela chuva. É como se seu aviso caísse sobre mim, meus desejos de seguir seus conselhos já estão sendo realizados.

Depois de um tempo encarando a janela, saí de casa e caminhei até o mercadinho mais próximo. Não precisei olhar muito, já percebi que estava vazio, conseguia sentir o olhar do caixa/dono do mercado percorrer meu corpo. Encarei todos os doces ao invés de olhar para ele, enfiando as mãos nos bolsos depois de afastar uma mecha do meu cabelo molhado. Quando ergui o olhar, já sabia que ele me olhava daquele jeito.

— Uma caixa de cigarro. — Tentei manter minha voz firme.

Desviei o olhar do seu rosto para os doces novamente, algo neles fazia minhas mãos formigarem, minha boca salivar sentindo seu sabor. Estranhamente, eu desejava aqueles doces mais que tudo - arrisco a dizer que desejava mais do que morrer.

— Pegue. — Uma voz disse. Imaginei que fosse do dono falando para mim, mas ele estava ocupado, de costas para mim, procurando as chaves. Olhei em volta e não havia ninguém. — O que está esperando? Ele nem está olhando, pegue.

Eu quase podia sentir a voz, palpável, o sussurro alcançando a minha nuca, um hálito quente e entorpecente. Sempre que ela ressoava, arrepios percorriam minha espinha, até tive a impressão de que havia alguém atrás de mim, o que, sinceramente, me fez questionar a minha sanidade. Mas, quando me virei, só conseguia ver as diversas prateleiras do mercadinho.

Encarei os doces, e senti eles me encarando de volta, como se jogassem um encanto até mim, a voz retornando suavemente. O estremecimento do meu corpo da cabeça aos pés, a sensação daquela voz tão perto de mim que juraria que ela estava, aos poucos, encorpando-se num ser.  E, se eu estiver de fato enlouquecendo, diria que senti os lábios da voz  tocar o lóbulo da minha orelha.

Involuntariamente, tirei as mãos dos bolsos e peguei um dos chicletes, mas parecia mais como se alguém tivesse agarrando meu pulso e movido minha mão até lá.

Quando minhas mãos estavam no bolso novamente, junto ao chiclete, a voz que escuto é do dono.

— O mesmo de sempre? — A voz me despertou para o mundo real.

As palavras ficaram presas na minha boca. Alguém parecia segurar minha língua, pois não conseguia movê-la de jeito nenhum. Sequer havia alguma vibração no fundo da minha garganta, indicando-me que eu ainda tinha voz para murmurar. Nas tentativas falhas de falar alguma coisa, acabei assentindo. Ele se vira, meus olhos focam nos doces que estão estranhamente ainda mais tentadores agora.

A voz permanece me assombrando, repetindo como um eco, cada vez mais alto e intenso. As palavras se assemelham a uma maldição, sendo lançado sobre mim e explorando todo o perímetro do meu corpo. Confusas, apavorantes e convidativas. Mesmo que eu lutasse contra suas ordens, uma tremedeira atravessou meu corpo inteiro até a ponta dos meus dedos.

De repente, um toque. Começando da nuca e indo aos poucos até meu ombro, deslizando delicadamente sobre mim. Uma sensação confortante e assustadora, como uma serpente se rastejando sobre meu braço. O toque se moveu até meus dedos, nos quais foram tocados suavemente, movidos até as mais variedades de doces, enquanto eu sentia os sussurros roçarem na minha pele.

Desta vez, não foi apenas um simples doce, mas foi não só uma mão cheia, como duas. Um movimento que não fiz, mas que tenho certeza de que aconteceu.

E minhas mãos retornaram para o bolso delicadamente, como se nada tivesse acontecido.

— Aqui. — Ele põe a caixa de cigarro sobre o balcão.

Eu pego sem dizer absolutamente nada, deixando a caixa junto aos doces no meu bolso. O dono me analisa, esperando que eu diga alguma coisa… que eu faça alguma coisa. Minha boca chega a doer de tanto que forço as palavras… repenso o que vou falar milhares e milhares de vezes.

— Eu… — Começo a caminhar na direção da saída. — … te pago depois.

Antes que eu saísse ele bufou, os olhos percorreram meu corpo e eu sabia o que ele estava querendo dizer. Tirou os olhos de mim e assentiu com os lábios franzidos de indignação.

Pedi a minha mente para se tranquilizar, mas acabei correndo até em casa um pouco desesperada. Olhei para todos os doces que peguei…

Não sei qual foi a sensação que me invadiu naquela loja, mas eu ainda a sentia me perseguindo até meu quarto.

☆𝙳𝚊𝚗𝚌𝚎𝚛 𝚒𝚗 𝚝𝚑𝚎 𝙳𝚊𝚛𝚔☆Onde histórias criam vida. Descubra agora