Ácido

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Kiloton era gentil e atencioso. Megatron nunca entendeu como um ex-decepticon conseguia ter uma personalidade tão carinhosa. Kiloton não ficou irritado com sua falta de vontade ou pesadelos noturnos, na verdade, ele foi muito paciente. Megatron demonstrou ser arredio aos toques e preferindo passar os ciclos em silêncio, desfrutando dos pequenos sons causados pela espaçonave em movimento. 

Lentamente, Cybertron se tornava uma lembrança distante, dolorosa, mas distante.

Hoje, Megatron acordou com o balançar suave de um servo em seu ombro. Ele piscou e bosejou, despertando de uma longa recarga tão necessária. Kiloton o olhava, sentado na beirada do beliche. "Você está dormindo à doze horas, certeza de que não quer comer alguma coisa?" 

Megatron esfregou os olhos cansados e virou de lado, sentindo as cobertas se moverem junto. Kiloton o observou por longos minutos silenciosos, vendo como Megatron parecia um grande gato terrestre preguiçoso. Mas a coisa mais chamativa em sua estrutura era a distensão em seu estômago. Um pouco redondo agora, o espumante estava crescendo e com ele, a vontade de Megatron para se livrar dele.

Eles não comentavam sobre isso, por enquanto. Kiloton entendia que essa decisão inteiramente do transportador e se Megatron quisesse mesmo o aborto, ele o ajudaria. 

"Estou sem fome" Megatron respondeu, escondendo o rosto no travesseiro. Kiloton suspirou e esfregou a face, também cansado. Ele passou noites inteiras fabricando supressores para limpar os sistemas de Megatron das drogas administradas pelos médicos Autobots e Decepticons. O efeito duplo tratava a abstinência, mas teve um impacto negativo em Megatron.

Ele estava mais sonolento, mais cansado e mais... lento. Kiloton entendeu que eles realmente o quebraram além da recuperação completa. Megatron não poderia mais viver sem esses supressores ou sofreria da abstinência. 

"Precisa ficar forte para... você sabe" Kiloton gentilmente acariciou seu peito, sentindo o ronronar suave vibrando de sua centelha. Megatron abriu as ópticas, finalmente olhando para a bandeja de comida que Kiloton trouxe. Ele se sentou de forma desajeitada para comer. "Muito bem, como você se sente?" Perguntou ao ver Megatron começar a comer devagar.

"Melhor" Megatron respondeu, limpando um pouco de energia da bochecha. Suas pernas não doíam tanto como antes e ele agora conseguia andar sem apoio, por poucos minutos. Claro, ele ainda não havia recuperado sua capacidade de transformação, mas era muito melhor agora. Sem paredes escuras ou correntes. "Quando podemos fazer a cirurgia?" 

Kiloton mordeu a glossa, levantando-se e pegando a bandeja agora vazia. "Em algumas semanas... só estou esperando seu corpo ficar mais forte. Não precisa se preocupar, estou preparando tudo. Pode descascar agora, volto mais tarde" 

O médico colocou o cobertor de volta em cima de seu corpo e saiu do quarto, deixando Megatron sozinho com seus pensamentos. Assim aue Kiloton desapareceu na porta, ele retirou o cobertor e encarou aquela elevação em sua barriga.

Pequeno e redondo, nada exagerado. Era estranho ver seu revestimento aceitando a mudança e começando a se esticar para acomodar o passageiro. Não foi assim da última vez. Megatron queria poder explicar toda essa confusão para... esse minúsculo serzinho. Ele não merecia viver em um mundo tão cruel e injusto. Megatron gostaria de dizer que estava protegendo-o do fardo de ser seu filho. E pelo amor do Allspark... ele nem sabia qual daqueles inúmeros mechs desgraçados foi o culpado. Starscream? Ironhide? Prowl? Um dos wreckers? 

Optimus? 

Megatron queria vomitar, literalmente.

"Olhe, eu sei que pode parecer ruim, mas você não vai sentir nada e nem vai precisar sentir algo" Megatron segurou seus servos para não embalar a barriga. Os protocolos de gestação exigiam conversar e acariciar o espumante indefeso, mas Megatron evitava com todas as forças. Os dedos do cinzento tremeram de antecipação. "Eu não serei um bom portador e vamos ser caçados pelo resto da vida. Quero ter dar uma oportunidade que eu não tive. Sua centelha vai voltar para Primus e você poderá tentar outra vez, com uma pessoa melhor" 

Terminando a frase, sentindo um calor estranho se espalhando dentro dele, Megatron percebe o espumante compartilhando parte de seus sentimentos. Tristeza, confusão e dor. Megatron sacudiu o elmo, tentando afastar a sensação. Ele pegou o cobertor e se cobriu, tentando voltar a dormir. 

Kiloton guardou a bandeja vazia na pequena cozinha da espaçonave. Ele começou a trabalhar na enfermeira novamente, ou redirecionando a nave para outra rota. Eles não poderiam ficar no espaço por muito tempo e precisam reabastecer. Um planeta neutro era a melhor opção. Kiloton tinha certeza de que ninguém de lá machucaria um transportador e nem Megatron depois do acontecimento. Talvez eles pudessem se restabelecer em uma colônia, tentar recomeçar? 

Kiloton riu tristemente, guardando uma caixa de medicamentos na prateleira correta. Ele visualizou seu próprio reflexo na prateleira polida, vendo uma pequena cicatriz na bochecha, quase imperceptível. Um ferimento de infância de quando ainda trabalhava como aprendiz nas arenas de Kaon, onde, por acaso, ele conheceu Megatron. Foi um dia chuvoso, aquele. 

Ele foi comprado para trabalhar como aprendiz médico de um velho mech. O comprador trabalhava em uma arena de gladiadores e estava interessado em um espumante para assumir seu lugar algum dia. Kiloton foi adquirido em um leilão. O que aconteceu com sua família, sire e carrier, irmãos e irmãs? Ele nunca soube ao certo, todos foram vendidos por vários motivos.

Escravos, bordéis, órgãos...

Kiloton foi levado para a arena e alguns dias depois de começar o aprendizado, consertando dedos quebrados ou ferimentos leves. Ele cresceu ali e era o único mundo que conhecia, nunca foi permitido sair dos muros. 

Estava chovendo naquele dia, gotas de ácido caiam do céu. A chuva em seu planeta sempre foi corrosiva e ele ficou longe dela, mas algo chamou sua atenção. No centro da arena, no meio da chuva ácida, um jovem mech cinza e enferrujado estava sentado, olhando para o céu, aparentando estar contemplando o tempo. Kiloton ficou preocupado, vendo como as gotas de ácido desciam sobre o corpo do outro e deixavam rastros de ferrugem e derretimento. E por que ele não estava sentindo dor? Gritando ou chorando? Não importava, ele tinha que agir.

"Hei, você está bem?" 

Kiloton buscou um pedaço de metal velho e o usou como proteção para passar pela chuva e cobrir o mech. O estranho piscou, meio curioso por ser interrompido. Kiloton voltou a perguntar. "Precisa sair da chuva, ou vai queimar um circuito" 

"Isso é chuva?" 

Os olhos de Kiloton se arregalaram e ele engasgou, meio nervoso. "É sim, chuva, você não sabia?" 

O cinzento o balançou o elmo em negativo, voltando a olhar o céu. "Essa é a primeira vez que vejo isso" 

A expressão de Kiloton passou de confusão para compreensão. "Ah, você é o novo mech que compraram para ser gladiador, o mineiro. Nunca saiu do subsolo, não é mesmo? Tudo bem, mas precisa sair, seu corpo deve estar doendo por..."

"Não está" 

"Ah?" 

O cinzento olha para ele, duas ópticas vermelhas quase apagadas e seu sorriso fraco por uma vida dura. Ele parece estar extasiado por sentir essa dor, as gotas ácidas caindo em sua armadura e penetrando as costuras. Marcas estranhas enfeitavam seu corpo, como marcas de solda ou montagem. Ele foi remodelado? Era um processo doloroso, muito. E se foi, por que ele não estava descansando com os outros gladiadores? "Não doí tanto assim, eu não me importo" 

Kiloton fica horrorizado, como ele poderia estar gostando disso? Gladiadores eram sempre amarrados na chuva como castigo por suas impertinências, mas esse mech estava fazendo isso de bom grado? 

"Primus, você vai queimar" Kiloton bufa, sentando ao seu lado e usando a placa de metal para proteger os dois. O cinzento parece confuso com isso, muito, mas ele aceita a aproximação do outro jovem. "Eu sou Kiloton, e qual é a sua designação?" 

"Megatron" Ele fala com certa estranheza, como se fosse a primeira vez que tivessem perguntado, e era. Kiloton então passou um braço em seu corpo e o trouxe para mais perto, protegendo-o do ácido.

"Prazer em conhecê-lo, Megatron"

Continua 










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