Prólogo

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Num dia enluarado de maio, me vejo imersa nos corredores estéreis de um hospital desolado pelo tempo e pela crueldade, onde meu coração ecoa uma sinfonia de agonia, à beira de rasgar minha garganta, enquanto a sinfonia sombria de Krzysztof Penderecki ressoa em meus ouvidos, regendo minha angústia.

Meu sangue escorre da minha perna quebrada ao pular do segundo andar, da janela do seu quarto, tão escasso quanto um fio de vida, deixando uma trilha invisível no chão, vestígios de uma existência condenada ao esquecimento.

Ao meu redor, apenas cadáveres mutilados, torturados, violados... Ele ceifou vidas, espalhou o terror...

Em meu vestido, tingido de um azul Royal desbotado, manchas de um destino cruel se entrelaçam nas pontas rasgadas, testemunhas mudas de um mundo desolado, onde cada pedaço de tecido é um relicário de memórias dilaceradas.

Sinto sua presença, tão evasiva quanto a sombra que me cerca, um espectro implacável que me persegue sem trégua. Ele está ali, nas trevas que me envolvem, observando, à espera do momento propício para me engolir em uma voragem de tortura, física e mental.

A cada passo vacilante, questiono-me se a morte finalmente me abraçará em seu manto gélido. Será que correr até que a última centelha de vida se apague é a única maneira de reencontrar meus pais? Será este o preço a pagar pela redenção? Será essa a única salvação que restou?

Não!

Não há esperança, apenas a corrida incessante, como em tantos outros dias. Não sei o que fazer além disso. Não há futuro desde que aquele demônio emergiu do abismo. Ele ceifou a vida de todos, ou quase todos... Ele destruiu tudo, o meu, o nosso mundo, num único dia.

Ele os esmagou, os homens, aqueles que diziam proteger o mundo com seus braços, ele os dominou, como cães, os usou, como fantoches, os levou à ruína, como vermes.

E quando viro o corredor, o encontro, cedendo à exaustão, caio de joelhos, os ralando no piso. Vejo seu sobretudo vermelho, tingido de um vinho sangue, vivo, e em seu olhar vazio, ele me encara, com satisfação, segurando a cabeça de uma mulher em sua mão. Ele encontrou mais um, então, por isso eu fui tão longe!

Era óbvio, e ao mesmo tempo angustiante, por que, de todos os que matou, somente eu ele deixou viva?

Na face de sua vítima, estava fixa a expressão de horror que todos têm ao encontrá-lo. A coluna vertebral ainda estava ligada; ele deve ter tido trabalho dessa vez. Normalmente, arranca de qualquer jeito, mas desta vez não, a pobre moça deve ter sentido o pescoço ser desmembrado do resto do corpo.

Esse maldito deve ter amado o som que o corpo fez ao ser rasgado, e o sangue que se espalhou disso.

É angustiante de se pensar...

Tomada pelo nervosismo, ouço um gemido escapar da boca dele, como se todos os cadáveres que ele devorou passassem a grunhir seus ecos de medo e agonia. E na profundidade, ouvia o gotejar do sangue fresco cair diante de mim.

— Você não cansa? Já te avisei, Arielle. Não há escapatória do seu tormento! — Sua voz é como o rugir de um leão, quebrando a calmaria mórbida, trazendo terror. Sinto um arrepio sempre que ouço; seus cabelos negros e longos, como o breu da noite mais escura, caem sobre sua face de cadáver, e então, soltando-a, a cabeça despenca a seus pés.

E me assusta, foi como ver um tomate se esmagando contra o chão, seus miolos se espalharam, respingando em minha face, forçando-me a fechar os olhos e abri-los logo após.

Quando abro, ele me encara, como sempre, e avança. Seus sapatos de couro escuro estão tingidos de sangue; um cheiro pútrido exala de seu ser. A três ou quatro passos adiante, ele está à minha frente e me golpeia como um animal. Sinto sua mão gélida me atingir, carregada de tanto desprezo que chega a ser palpável. E eu continuo a encará-lo de cima, meu sangue escorrendo aos lábios, seu sabor metálico preenchendo minha boca, enquanto minhas lágrimas se desenrolam, caindo aos meus joelhos.

É o sentimento de exaustão, de meu ser. Não suporto mais isso, não aguento mais viver! E o pior não é sofrer, mas sofrer sem saber se vou ou não morrer. É acreditar que eternamente estarei aqui, à mercê de seus desejos...

Viver em um mundo onde todos já estão mortos, é o castigo que mereço por ter caído em pecado? Será esse o inferno? São as únicas perguntas que ainda tenho, ou que ainda consigo fazer...

Devorada Pela Fera IncontrolávelOnde histórias criam vida. Descubra agora