A Primeira de Muitas Noites

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Caminhamos sob a luz agonizante do entardecer por intermináveis cinco horas, a noite começou a desdobrar suas sombras sobre nós, como tentáculos soturnos que envolviam nossos corpos cansados. O frio, tão penetrante que parecia perfurar os ossos, envolvia meu corpo, uma dança macabra com o calor sufocante emanado pelo tecido do vestido, uma lembrança da civilização que deixávamos para trás. Cada passo era uma batalha contra a exaustão, a corda da aflição apertando minha alma como um grilhão implacável, mantendo-me à beira do desespero. A asfixia, um espectro sinistro que me sufocava a cada inspiração, arrancando-me da inconsciência num sobressalto incessante, alimentada pela adrenalina que inundava minhas veias já exauridas.

Quando finalmente paramos, encontramo-nos numa estrada desolada, além dos confins da civilização, adentrando uma floresta enigmática e sombria, onde até mesmo as árvores pareciam sussurrar segredos obscuros. Os mosquitos, como mensageiros da desgraça, dançavam ao redor de mim, marcando-me com suas mordidas como estigmas de um destino cruel.

Sob meus pés, vi os vestígios da vida selvagem, lebres e roedores fugindo à nossa presença, agitando a vegetação ao seu redor como um prenúncio de perigo iminente, enquanto a criatura à minha frente abria caminho para minha aflição, uma sombra sinistra que ecoava meus próprios medos. Num instante fugaz, nos deparamos com as margens silenciosas de um rio sereno, a lua erguendo-se majestosamente no céu como uma testemunha silenciosa de nossa angústia. Minhas vistas embaçadas sucumbiram ao peso do cansaço, e então, deixei-me cair sobre a areia fria e o vestido, o aroma da terra invadindo minhas narinas como um lembrete de minha própria mortalidade, oferecendo um breve conforto sob o manto escarlate que ele jogava sobre meu corpo como uma mortalha.

Adormeci... E ao despertar com a manhã, o sol emergia no horizonte, sua luz penetrante atingindo meus olhos fatigados como lanças afiadas. Envolvi-me no tecido áspero que me protegia, um manto outrora de terror que agora me abraçava como uma segunda pele. Ao erguer-me, seu perfume envolveu-me, provocando arrepios que percorriam minha espinha como serpentes venenosas. E ele descansava sobre a areia, os cabelos acariciados pela brisa suave que sussurrava em meus ouvidos como um presságio sombrio.

Ao seu lado, duas presas caídas, quase partidas ao meio por suas garras. Sangue tingia a areia, mas nenhuma mosca ousava voar ao seu redor, talvez em reverência à aura que ele emanava, ou talvez porque ali jazia o motivo de minha salvação, a morte!

— Coma! — Ele ordenou, e eu, indiferente, ousei responder, — Sério? Eu não me alimento de carne crua, muito menos de pobres criaturas, assim! — Levantei-me, minhas pernas trêmulas de fraqueza, a fome corroendo-me por dentro como um verme insaciável. Mesmo naquela situação repugnante, senti, no âmago, o desejo de alimentar-me, mas algum resquício de humanidade ainda presente em mim me segurou, e dei um passo adiante, rumo às águas para me purificar da sujeira da terra, mas então...

— Não? Quer que eu a asse? — Ele disse, irônico, e diante dos meus olhos, vi-o estender o braço sobre as presas, e num instante, chamas ardentes as envolveram como uma fogueira, elas refletiram nos meus olhos, senti o calor se aproximar, mas pude perceber, gritos quase inaudíveis ecoarem, lamentos das vidas ceifadas? Talvez... E num instante, pude vê-la, minha mãe, sofrendo em meio àquele fogo, e então, ele cessou, num estalar de dedos novamente...

— Minha... — eu murmurei, caindo novamente, mas imersa em lágrimas que achei que já haviam cessado.

— Não encare diretamente as chamas do purgatório! Elas refletem suas aflições, e delas, emergem com mais força e poder, até o mais calmo dos anjos já queimou nelas... — ao dizer, ele se ergueu, a carne praticamente carbonizada, e me deu uma única ordem, à qual mal tinha forças para resistir: — Não vá a lugar algum, eu voltarei em algumas horas! — mais ordens, mais mistérios, quantas mais ele viria a me revelar?

Eu não sabia... Até hoje não sei, mas o vi entrar naquela mata, como ventania, mover-se por dentro, e desaparecer...

Tentei, mas em alguns minutos já estava rasgando a carne entre meus dentes, senti o cheiro e o gosto queimado, mas a cada pedaço, sentia mais e mais força, quando terminei, me arrastei até a água, o gelado das águas amenizava a dor, seu sentia nas costas e nos pés. Me joguei, senti o mergulho, purificar-me da areia que me cobria, bebi, hidratando minha garganta, e um respiração ofegante, gritante, pude dar... Confesso, me senti viva naquele momento...

Sem pensar duas vezes, me despi, deixei as águas levarem as vestes que protagonizaram minha dor, não me livrou dela, mas me senti menos pesada. Fiquei ali, até que ouvi as árvores balançarem, o céu ficar laranja, já estava novamente, no término da tarde, nem o vi passar, e pude o ver, a criatura, caminhando pela margem, me encarando, eu quase tive um susto, mesegurando para não afundar...

Ele parou, alguns instantes, e me encarou, eu senti um arrepio naquele instante, então, resolvi caminhar em sua direção, mas ele, fez o mesmo, ele deu um, dois, três passos.... Quando a água já estava em meus seios, cruzei os braços, e quando alcançava minha virilha, me prontifiquei de fechar minhas pernas, eu estava trêmula, sem entender, o porquê... Nesse instante, a água alcançou seus joelhos,  e quando olhei em seus olhos, fui consumida, uma espiral girava em meio a vermelhidão, me fazendo ceder, senti, um desejo pulsar em seu olhar, que me fez desarmar meus braços, meu corpo trêmulava, me deixando com as pernas quase bambas, e pude sentir um calor envolver meu corpo...

Ele me fez sua presa... Não como as outras... Ele me seduziu, com seus encantos e magias naquele instante... Justo ele fez, um ser a qual tinha tanta repulsa... Quando seus lábios, tocaram aos meus, senti a sua língua, me envolvendo em um beijo ardente, minha mente turvou, enquanto me abraçava, gemidos de dor ecoaram, com suas garras me marcando, me segurando, minhas mãos apertavam em suas vestes, e então, em um segundo, desapareceram, me vi segurando naquela pele gélida e rígida, sentindo cada detalhe, eu não pensei, apenas fiz...

Eu estava indefesa, por mais que o desejasse matar naquele instante, naquela noite, eu tive a primeira de muitas noites ao lado do filho do diabo, me lembro como flashs, dos movimentos que fez sobre as águas, da rudez que teve ao me golpear, suas garras arranhando meu corpo, suas mãos me segurando como um mero objeto, seu corpo gélido me dominando, sem me deixar dar uma única resposta, me senti vítima de desejos aos quais não me pertenciam... Violada... Ou será, que me pertenciam? O quão repulsa e desejo estão interligados? Eu me perguntei, nas profundezas de minha mente, a cada urro que dei...

Cada momento ao lado dele era um mergulho mais profundo no abismo da escuridão, onde minha própria alma parecia se perder entre a dor e o prazer, numa dança de tormento e êxtase. Eu era como uma marionete em suas mãos, manipulada pelos fios invisíveis do seu poder sobrenatural, enquanto ele se deleitava com meu sofrimento e minha submissão.

A cada toque, a cada olhar, eu me afundava mais na escuridão, perdendo-me na voragem de sensações proibidas e de seus desejos perversos. E assim, naquela noite eterna, eu me tornei sua, não por escolha, mas por castigo, condenada a vagar entre as sombras como uma alma perdida, aprisionada para sempre no abraço gelado do filho do diabo. Será? Talvez, morte, seja mesmo minha única salvação.

Devorada Pela Fera IncontrolávelOnde histórias criam vida. Descubra agora