Capítulo 1

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NOVEMBRO DE 1988

Alfredo Albuquerque


— Fico satisfeito que tenha aceitado trabalhar para mim, rapaz. — Gaspar estendeu a mão em despedida após ter me mostrado as terras de sua fazenda. — Se for esperto e souber valorizar as oportunidades, poderemos ir longe juntos.

Encarei os dedos longos, de pele grossa e com as pontas manchadas pelo cigarro, assim como os dentes amarelados. Mantive a expressão séria, não escondendo o asco que sentia do infeliz.

— Tenho certeza que sim. — Apertei sua mão com firmeza, deixando-o acreditar que me tinha como aliado.

— Se acomode e esteja pronto após o almoço para finalmente mostrar trabalho, peão.

Quis responder à altura, tão desprezível quanto, mas me contive. Ainda não era a hora. Apenas confirmei e nos despedimos.

Gaspar se achava esperto, intocável sobre o pedestal de sua arrogância e impunidade. Era ótimo, porque quando a realidade o atingisse, seria tarde demais para conseguir reagir.

Entrei no alojamento compartilhado com outros funcionários, um cômodo comprido com quatro camas de solteiro dispostas de cada lado e um banheiro ao fundo. Tive vontade de pôr fogo em tudo tamanho nojo do lugar. O piso estava sujo do barro trago pelas botinas, camas desarrumadas, cheiro forte de suor masculino e o banheiro simplesmente sem condições de uso.

Como um bom peão acostumado na roça, aquelas coisas não deveriam me incomodar, mas era impossível. Se havia algo que aprendi enquanto me alistei no serviço militar foi a disciplina e organização.

Caminhei até minha mala sobre a cama destinada para mim, a qual tinha deixado ali antes de percorrer a fazenda com Gaspar. Passei os olhos pelo ambiente em busca de algum móvel onde pudesse guardar minhas roupas, mas achei apenas uma arara capenga, sem um dos pés.

Desisti, deixaria as coisas na mala mesmo embaixo da cama, com a certeza de que o primeiro objetivo seria conquistar um espaço apenas meu.

Tirei a camisa pendurando em um cabideiro chumbado na parede, mas mantive o chapéu na cabeça, hábito antigo. Encontrei uma vassoura no banheiro e passei-a pelo quarto enquanto reexaminava todo o plano e como ele tinha sido perfeitamente executado até o momento.

Aos 28 anos, não tive o privilégio de cursar uma graduação, mas me dediquei em aprender o que estudei até ensino médio. Nascido e criado na roça, aprendi a rotina do campo com o meu pai. Não havia uma atividade braçal na qual eu não soubesse fazer graças a ele.

Além disso, assimilava rápido, era astuto, bom de conta e raciocínio lógico, movido pela mentalidade empreendedora, o que fazia ser muito mais do que um simples peão. Gostava de me manter atualizado com as notícias do mundo, preço da arroba do boi, exportação e tantas outras variáveis importantes para o campo.

Quando os parceiros de negócios em comum entre Gaspar Fontes e Sebastião Brandão espalharam a notícia de que o seu maior concorrente no país tinha uma pessoa tão boa em sua equipe, Gaspar mordeu a minha isca, não aceitando se sentir defasado. Então a oferta de trabalho surgiu, em um primeiro momento como uma espécie de faz tudo, mas eu sabia que em pouco tempo me tornaria seu homem de confiança.

Terminei de remover toda a sujeira do lugar, levando-a em seguida para a lata de lixo no lado de fora. A poucos metros, alguns peões preparavam a boiada para a comitiva e outros selavam os cavalos, mas o que chamou minha atenção foi o touro enorme se debatendo dentro da baia precariamente presa por um trinco frágil. Aquilo não daria certo.

Virei-me em direção ao alojamento, guardando os itens utilizados quando uma voz desconhecida soou logo atrás de mim.

— Mas rapaz... será possível que o patrão se enganou pela primeira vez ao rasgar tanta seda para um marica desse?

— Como é? — girei lentamente, franzindo o cenho.

O homem baixinho, roliço e com o botão da camisa estufado, mascava um fumo fedido sob a aba do boné velho enquanto prendia o cavalo em um nó frouxo próximo a entrada do alojamento.

— Oxe homem, o Rei do Gado falou tanto sobre a sua chegada que tive que vim conferir com meus próprios olhos. A última coisa que esperei encontrar foi você fazendo uma atividade de mulherzinha. — Parecia um tanto indignado, mais pelo lado cômico do que pelo ignorante. — A propósito — estendeu a mão, amistoso — Zé Vitu, a sua dispor.

— E desde quando serviço tem sexo? — Retribui o gesto de modo firme. — Se tem que fazer, não importa se é homem ou se é mulher, só tem que ser feito.

Ele me encarou desconfiado, colocando o rosto para dentro do quarto compartilhado.

— Tenho que admitir que ficou melhor do que tava.

— Imundo você quer dizer — corrigi.

— É, os home daqui é meio porco mesmo. — Tirou o boné, coçando a cabeça desconcertado. — Aquele vaso tem hora que me dá até medo. — Riu, por fim. — Mas voltando ao que importa, o chefe mandou que eu te mostrasse como funcionam as coisas por aqui. O almoço está quase pronto lá no galpão. Já comeu?

Neguei com um gesto.

— Agradeço a receptividade. Vou só jogar uma água rápida no corpo e vamos.

— Tá bom, você vai se adaptan... — sua fala foi interrompida com os sons do boi avançando contra a madeira, chamando nossa atenção. — Caceta, o que esse bicho tem hoje?

Não houve tempo de reação. Em um piscar de olhos, o bicho avançou contra a madeira envelhecida. O trinco quebrou, e ele saiu desembestado, aproveitando que as porteiras estavam abertas para a passagem do gado.

— Misericórdia, o Tempestade vai lascar com tudo. — Zé Vitor levou as duas mãos na cabeça e começou a gritar, sem reação.

O bicho estava furioso. Os riscos de um animal naquelas condições eram enormes. Sem pensar em mais nada, rumei até o cavalo, montando-o ao mesmo tempo que desfazia o nó, saindo em disparada logo atrás. 

[DEGUSTAÇÃO] - A HERDEIRA PROIBIDA PARA O COWBOY: Família AlbuquerqueOnde histórias criam vida. Descubra agora