Dor

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    Já se passaram dezoito dias e, sinceramente, eles já não tinham certeza da eficácia dessa quarentena. O total de infectados com a doença já ultrapassou os dois mil enquanto o de mortos chegou na casa dos quinhentos. Levando em consideração que cada uma das áreas abriga um total de mil pessoas, quer dizer que cinco por cento dos tripulantes já foram para um lugar melhor (ou pior, Rafaela espera) enquanto vinte por cento dos mesmos já foram contaminados com o que quer que seja. Nenhum dos integrantes de seu pequeno grupo havia sido infectado pela doença, por alguma maldita ironia do universo, eles eram obrigados a receber a notícia da ''internação'' de seus familiares e amigos por míseras mensagem.

  A primeira ir foi Naarah. Os quatro estavam em uma chamada em grupo quando o comunicador de Bruna apitou em um som irritante. Os outros três ficaram em silêncio enquanto a garota mais velha recebia à notícia. Rafaela nunca iria esquecer os gritos de horror que sua prima soltou naquele dia, o som de sua voz gritando até ficar rouca somado com o arranhar de seus dedos de metal contra as paredes não poderia ser esquecido não importa o quanto ela tentasse.

 Após alguns dias foram os pais de Nicolas, mortos por dano cerebral e desnutrição. Em seguida o irmão mais velho de Benjamin, cuja cabeça foi corroída e nem mesmo os olhos restaram e, cerca de dois dias atrás, dois dos irmãos de Rafaela.

  Eles passaram a conversar poucas vezes após o acontecimento com o irmão de Ben, Rafaela não podia mais participar das ligações sem se lembrar dos gritos de dor de Bruna, dos soluços sufocados de Benjamin ou dos bagulhos horrendos de coisas se quebrando que soaram do microfone enquanto ela conversava com Nicolas. Não queria se lembrar das poucas chamadas de vídeo, das marcas de dentes mal escondidas sobre as mangas de Nicolas, ou nas contusões no rosto levemente mais magro de Bruna, queria pensar menos ainda no motivo de Ben sempre cobrir o pescoço durante suas conversas.

 Mas o pior eram seus sorrisos, ele sempre estavam sorrindo. O leve erguer de lábios estava lá quando explicavam com falsa calma como suas rotinas têm sido, ou quando diziam o que faria quando isso tudo finalmente acabasse. Falsa alegria, falso humor e, o pior de todos, falsa esperança. Todos tinham plena consciência de que não sairiam daqui vivos, seus planos jamais seriam realizados e nunca mais poderiam ver suas famílias.

 Rafaela tentou amenizar toda a situação, ser realista e tentar tirá-los de seu estopor, mas quando menos percebeu, também estava com um sorriso largo no rosto. Ela sorria enquanto tentava esconder as bandagens imundas em seus braços, gargalhava para câmera torcendo para que ninguém visse as marcas de suas unhas nas paredes, Rafaela esperaria que a ligação se encerrasse para se encolher no canto do quarto e voltar a roer as unhas até a tentativa de amenizar aquela fome infernal que parecia devorá-la de dentro para fora. Ela arrancava as cutículas com os dentes e pensava que tudo isso era uma maldita brincadeira. É como se o motivo de ainda não terem adoecido foi para ver suas pessoas mais queridas morrendo de modo grotesco para em seguida serem lançadas no vácuo do espaço. Somado ao fato de que nenhum deles recebeu comida durante o dia inteiro, parece que estão fadados à um destino muito parecido. Ter seu corpo corroído de dentro para fora por suas própria células.

 Não ter sido infectado não é um milagre, e sim o catalisador que prolonga seu maldito sofrimento. Não, ter decidido entrar nessa nave foi uma decisão desesperada e estúpida, não foi melhor do que quem escolheu continuar vivendo naquela cidade amaldiçoada por Deus num mundo destruído.

— Puta merda, mas que caralho, alguma porra está errada.

— Não fala palavrão, porra. — Nicolas guinchou. — O Ben está ouvindo.

— Desculpe.

 Ela batucou os dedos em carne viva na mesa de metal, as pálpebras se fecharam e Rafaela permitiu que pensamentos nocivos rodopiassem em sua pobre mente cansada por um tempo indeterminado. De repente, os olhos dela se abriram, pupilas se contraindo para o tamanho de um grão de arroz.

— Ouviram isso?

  As vozes da chamada cessaram por alguns instantes, antes de Benjamin perguntar num tom baixo e receoso:

— Isso o que?

 Rafaela fez um som de 'shhh' e tentou escutar com mais atenção. O barulho que ela ouviu era como um chiado, mas escutando com cuidado, era possível ouvir um baque também, o chiado continuava por quatro ou cinco segundos antes de ser abafado pelo baque que parecia... parecia mais próximo?

 A garota não entendeu muito bem o que estava ouvindo, ela se aproximou da porta de saída firmemente fechada e encostou a orelha na superfície de metal, sobrando um chiado baixo ao sentir o frio contra sua pele quente. Rafaela então contou: um, dois, três...

 Ela deu um pulo assustada. Outro baque alto, parecia no fim do corredor. Rafaela encostou a orelha novamente.

Um, dois, três, quatro...

Mais próximo.

Um, dois, três...

No meio do corredor.

Um, dois, três, quatro, cinco...

No quarto ou lado.

Um, dois, três, qua- !!??

  O rosto de Rafaela foi de encontro ao chão com um baque alto, o som de seu nariz se quebrando daria arrepios em qualquer um que ouvisse. A garota segurou seu nariz dolorido, um rio de sangue escorria de suas narinas e passava pela boca, trazendo um gosto metálico e amargo à língua da garota desnorteada.

  Rafaela se levantou com cuidado e encarou o motivo de sua queda: as portas escancaradas de seu dormitório. Ela, corajosa e relutante, pôs a cabeça para fora .

  Tudo estava no mais completo silêncio, até um fio de cabelo caindo poderia ser ouvido, e isso assustou a garota. As portas dos outros quartos também estavam abertas, algumas em um estado pior do que as outras, como se a abertura tivesse sido forçada pelo lado externo. As lâmpadas de calor artificial no teto piscavam como se estivessem sugando toda a energia que podiam, as portas automáticas de alguns dormitórios abriam e fechavam sem ninguém as controlando, mas, fora aquele sentimento estranho de anormalidade, não havia mais nada.

Rafaela suspirou aliviada.

  De repente, o chiado infernal retornou, as portas automáticas batiam tão violentamente que o metal amaçava com o impacto. O som de alguém ou algo se arrastando pelo chão fez os pelos do corpo de Rafaela arrepiarem, sua mandíbula rangeu e a garota não pensou duas vezes antes de tentar fugir, mas suas pernas estavam moles demais para aguentar o próprio peso. Rafaela se apoiou nos cotovelos e joelhos para fugir nem que fosse se arrastando.

  O som se aproximava, Rafaela temia o que veria se olhasse para trás. Com um esforço sobrenatural, ela conseguiu pôr seu corpo inútil de pé e correu num ritmo frenético, as luzes piscando a deixavam confusa, o som desnorteante de coisas batendo e voando somado a dor pulsando em sua cabeça fizeram a pobre Rafaela dar de cara em uma parede de metal.

  A garota soltou um grito rasgado, uma mistura de dor e desespero. O gosto de sangue em seus lábios a fez vomitar parte da bile em seu estômago, cospindo um dente no processo, depois cair no chão desossada. Ela não queria mais resistir, todo seu ser implorava por um merecido descanso, mas o universo não daria isso a ela... não hoje.

  Com a visão turva, Rafaela viu uma sombra se aproximando dela. A garota tentou se debater, mas o estranho era mais forte e rapidamente a segurou nos braços, a figura embaçada deu alguns passos, apertando a garota ofegante, até que Rafaela se debateu novamente, mais forte e violenta, como um peixe fora d'água a procura de oxigênio.

  Mas, para o azar dela, todo aquele desespero resultadou em sua cabeça batendo contra uma pilastra de metal na esquina do corredor, o baque ecoou por todo o ambiente vazio e Rafaela finalmente parou de se mover, ficando imóvel nos braços do estranho com um filete de sangue escorrendo de sua testa ferida.

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⏰ Última atualização: May 29 ⏰

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