- É estranho ver você na minha frente. Tenho te procurado em lugares que você não esteve em anos.
A mão trêmula dos dois era notória,mas não comentada. Eles seguiam olhando diretamente pro quadro,como se fossem dois críticos de arte,ou dois artistas,ou dois estudantes ou um casal de namorados em um passeio. Além de tensão,havia também curiosidade de como iriam chegar na realidade dos fatos: Ramiro,o agente investigativo. Kelvin,o fugitivo.
- Você não acha um pouco irônico pedir pra me encontrar em frente ao quadro de um policial sendo atacado?
- Não. Mas acho um pouco irônico esse ser o quadro preferido da minha mãe. - Um suspiro pesado saiu de Ramiro. Ele não se importa com a opinião de Kelvin. Não quer saber de que forma a arte atravessa ele. Não interessa. Não é pra isso que ele tá aqui. Mas,como tudo em relação ao mais novo,não se conteve - É isso que você vê? Um policial sendo atacado?
Kelvin riu levemente.
- Não,Ramiro. Eu também vejo esse quadro como você vê. Como sua mãe vê. Como todo mundo com um mínimo de consciência enxerga. É uma mãe defendendo um filho de violência policial perpetuada. Um racismo arraigado em toda uma instituição.
Ramiro podia sentir o olhar de Kelvin em si e sabia que qualquer curiosidade que estivesse ali,não seria guardada por nenhum pudor.
- O que me leva a perguntar por que um homem lgbt e preto resolveu ser policial. Eu imagino que sua mãe também tenha colocado a faca no pescoço de muito homem branco pra te defender.
- Colocou. Bem mais do que você pode imaginar. E de homens bem mais poderosos. Eu virei policial porque quero fazer o certo. Ser homem decente,como ela me ensinou. Fazer justiça.
- Como encontrar um criminoso no meio da madrugada? Fazer o certo assim? - Não tinha acusação no tom de Kelvin. Cada pergunta ali era genuína.
- Ela também me ensinou que nem sempre fazer justiça é fazer cumprir a lei. Não foi você que matou aquele cara.
- E aí,de repente,você resolveu me perdoar? Me ajudar?
- Não,de jeito nenhum. Eu ainda quero te prender. Mas pelo motivo correto. Pelo roubo do MASP e por todos os outros com seu modus operandi,que eu tenho certeza que foram crimes seus também.
- Como você tem tanta certeza,Ramiro? - Agora manter a postura séria e focada à sua frente já era impossível. O homem mais alto já tinha o corpo virado para o lado,o rosto levemente inclinado para baixo olhando diretamente nos olhos de Kelvin. - Como você me persegue por anos,repete a mesma mensagem pra Luana “Eu vou pegá-lo,colocar esse menino na cadeia custe o que custar” e agora,assim,do nada,essa crença inabalável que não fui eu?
- Porque eu te conheço - Era a resposta sincera - Eu tenho uma resposta técnica pra isso. Como não faz sentido,como você é mais esperto que matar um homem dentro da casa dele,que você roubou por anos e nunca matou ninguém. Mas a verdade é essa: sei que não foi você porque eu te conheço. Assim como tu me conhece também. Vindo encontrar um policial sozinho no meio da madrugada,onde eu poderia muito bem ter toda uma operação armada pra te prender.
- Mas eu sei que você não faria. Porque eu te conheço.
Tinha entendimento naquela troca de olhares. Eles sabiam e já tinham aceitado que havia uma conexão ali para além de qualquer explicação. Não foi um beijo em uma noite seis anos atrás ou alguns poemas acompanhados de recados rápidos. Eles só eram e pronto. Já existia um acordo ali de não exigirem esclarecimentos demais.
- Você sabe quem foi,não sabe? - Era algo que já martelava na cabeça do agente,que o cenário do crime não fosse de todo coincidência,que talvez alguém propositalmente quisesse incriminar Kelvin.
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we have not touched the stars (nor are we forgiven)
FanfictionRamiro lembra com riqueza de detalhes tudo que aconteceu na noite em que viu Kelvin pela primeira vez.