Cutucão

6 1 0
                                    

Uma coisa que faz parte de quem vive em uma cidade grande é usar o transporte público, normalmente ônibus. Eu costumo pegar quatro diariamente na minha rotina, isso significa horas entediantes sentado próximo de pessoas cansadas, desconhecidas, fedorentas e uma parcela de jovens usando celulares com fones de ouvido alheios ao ambiente.


Foi em uma das minhas viagens tediantes que um senhor sentou ao meu lado, eu estava na cadeira longe da janela por conta do frio, e ele mirou na minha direção, acabei afastando por educação. A figura se posicionou onde eu estava sem agradecer. Massageei os meus joelhos alguns segundos antes de dizer "boa tarde". Não recebi uma resposta, olhei em sua direção na segunda vez que falei, e ele parecia com a mente em outro lugar.


O horário de pico logo estava começando a ganhar vida, e minha atenção escapou para a janela, com o intuito de apreciar os outros veículos, foi quando senti o primeiro cutucão...


Tentei ignorar, o cutucão foi leve como se tivesse sido o dedo de uma criança. Em poucos minutos, ele voltou novamente um pouco mais forte. Saltei um pouco da cadeira porque foi bem na minha costela e mirei na direção do responsável: ele estava com suas mãos enrugadas descansando em cima das coxas, parecia pensativo.


Bufei e procurei uma cadeira vazia, o ônibus estava lotado. Pensei em levantar para me espremer entre algumas pessoas em pé, estava cansado demais da última viagem para continuar fora da cadeira. Me afastei o máximo que pude do chato, e logo um novo cutucão chegou bem na minha coxa. Nem percebi ele movimentando a mão.


"Você poderia parar!?" - Sei... parece que fui mais másculo, porém nunca consigo me posicionar diante de situações assim da forma que deveria. Virou na minha direção e percebi com mais clareza o seu semblante exausto.


"Eu sinto muito pelo cutucão..." - Cocei minha cabeça, me perguntando o que dizer a seguir. Sua reação foi como se tivesse sido um acidente, contudo, naquela hora, tive certeza que não foi um acidente o comportamento inoportuno.


Afastei e me aventurei entre o aperto e o fedor de suor de alguns trabalhadores. Não olhei para trás até sair do ônibus, e ele desapareceu com novos usuários naquele dia.


Encontrei o mesmo velho sentado em uma outra ocasião, não tinha mais outro lugar para descansar. Decidi continuar em pé, notei quando uma mulher arrumada, fora do habitual de pessoas que usam esse tipo de locomoção, sentando ao lado. Como esperado  não demorou muito para reclamar e sair o xingando.


Três dias depois, sentei bem atrás do velho: ele estava ao lado de um adolescente mexendo no celular, dava para ver os dois claramente, e foi aí que percebi que havia alguma coisa que os meus olhos não capturaram até o momento…


O rapaz saltou como se tivesse levado uma perfurada e fitou espantado na direção do velho, ele nem parecia ter notado a comoção ao seu lado.


A situação se desenrolou parecido com a minha: ele tentou ignorar, e aconteceu novamente, então percebi algo sair de dentro do casacão do velho, parecia uma mão, um pequeno membro. O rapaz rosnou alguma coisa e se afastou.

Aflição Onde histórias criam vida. Descubra agora