PRÓLOGO.

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Aquele maldito sonho sempre começava e terminava da mesma maneira, mas, mesmo assim, eu tinha medo.
Medo daquela floresta claustrofóbica e sem fim.
Medo daquele "jardim inexistente".
Medo daquela névoa estranha que sufocava o meu ar em todas as vezes.
Medo das memórias daquela casa em pedaços.
Que, um dia, foi a minha casa de infância.
Que, um dia, já foi um lugar bom e seguro pra mim.

Eu corria e corria por aquela floresta, tirando as folhas da minha visão e rezando mentalmente para que nenhuma delas caísse na minha cara.
Mas, claro, sempre tinha uma folha ou outra que acabava acertando meu rosto.
Sempre parecia que eu estava correndo de algo ou alguém.
Mas, quando eu olhava para trás, não havia uma alma viva sequer.
Estranho, não?

Parecia que toda vez que eu suspirava aquela névoa, meu pulmão se apertava mais e mais.
Mas, eu nunca desmaiava.
Com o tempo, tudo, de certa forma, se tornava entediante naquele sonho, afinal, eu já sabia o que iria acontecer, e qual seria a graça disso?
Quando me dei conta, meu pulmão parecia estar se normalizando, minha testa não estava mais suando, e eu já estava caído no chão, fora da tão conhecida "Floresta Claustrofóbica" — pelo menos, era assim que eu a chamava.
À minha frente, como sempre, havia aquela mesma casa.
A cor, que um dia já foi um marrom claro brilhante e chamativo, agora era um marrom escuro velho e desbotado.
A casa parecia cada vez menor, como se ela mesma percebesse sua "presença irritante e inútil" e quisesse desaparecer.

Me levantei, limpei a sujeira da terra nos meus joelhos e olhei para minhas mãos: elas estavam um pouco vermelhas, mas eu não me importei muito.
Eu já estou acostumado com isso, afinal de contas.
Mas, mesmo assim, doía um pouco.
Só um pouquinho.
Uma dor que eu conseguia suportar — como todas as outras dores da minha vida.

Isso ficou meio melancólico, não?
Enfim, como sempre, o cheiro de diversas flores — e talvez o odor de chiclete? — estava impregnado ali.
Não havia nenhum jardim — e nenhuma loja que vendia chicletes — perto dali.
Sempre achei isso estranho, como poderia ter cheiro de flores se não havia jardim nenhum?
Nunca entendi isso, mas, com o tempo percebi que nem sempre temos que entender totalmente os pesadelos que temos durante á noite.
Mas, mesmo sabendo disso, eu me pergunto: "por que?", eu nunca me lembrei de ver flores na minha infância.
Talvez fosse algo do meu subconsciente que eu me recusava a lembrar?
De qualquer forma, eu teria que continuar a seguir o percurso daquele sonho, então, andei silenciosamente até a porta da casa que estava um pouco entreaberta.
Sempre que eu entro, lembro do famoso ditado: "as aparências enganam".
De fora, parece uma casa totalmente destruída.
Mas, por dentro, ela é totalmente nova: pintura brilhante e renovada, nenhum mofo, nenhum cheiro ruim, nenhum livro velho, nenhuma estante empoeirada, nenhuma aranha, nenhum besouro nos cantos.
O que, de certa forma, sempre me causou um sentimento de estranheza, como se aquilo não fosse certo, sabe?
E é esse sentimento que me incomoda como uma coceira insistente.

A televisão é totalmente reluzente, como nos desenhos animados; um cheiro de frango assado vem da cozinha; sinto um aromatizador de ambientes no ar, vindo da sala de jantar.
Mas, esses cômodos não importam nem um pouco.
Eu não tenho que ir pra sala de estar, pra cozinha e nem pra sala de jantar.
Tenho que ir para o andar de cima. Para isso, terei que subir as escadas, que são tão limpas e brilhantes que quase me cegam.
Subo nos primeiros cinco degraus e tudo atrás de mim some.
A casa limpa e aconchegante some.
O cheiro bom some.
O sentimento de segurança some.
E é aí que o frio chega.
Mas, não é aquele frio normal: é um tipo de frio mortal, que se infiltra pelos nossos ossos.
Minha testa já começava a suar frio.
Aquele frio mortal parecia estar pior do que das outras vezes.
Será que...?
Não!
Esse sonho nunca mudou, por que mudaria agora?
Continuei andando até chegar ao andar de cima, que, sinceramente, era a pior parte do sonho para mim.
Era, agora não é mais, eu acho.
Havia cinco portas no andar de cima.
A primeira no canto direito era o banheiro: onde há um som de chuveiro ligado.
Mas, no fundo, eu sabia que não havia ninguém ali.
Eu ainda me lembrava das horas que passei tomando banho, tentando limpar uma sujeira invisível, uma sujeira que, no fim das contas, eu sabia que nunca sairia.
As outras portas eram só cômodos vazios, exceto a terceira porta — que ficava bem no meio — e a última porta, que ficava lá no canto esquerdo.
Eu conseguia escutar os gemidos de dor e desespero e a risada estranha, que vinham da terceira porta.
Eu conseguia escutar o baque seco e repetitivo e o som de algo prestes á se romper — como uma corda, por exemplo — que vinha da última porta.
A terceira porta era a pior.
Mesmo assim, eu me aproximo dela e coloco a mão na maçaneta.
Mas, em poucos segundos, afasto o meu braço.
Não, eu não posso fazer isso, eu sei que não posso fazer isso.
O trauma, eu não posso 'ativá-lo' de novo.
Eu tenho que esquecer dele.
Eu tenho que esquecer desse maldito trauma.
O choro que vinha de trás daquela porta parecia me chamar, mas, eu tinha que ignorar.
Aquele choro, e aqueles gemidos de dor era meus e somente meus.
Eu não queria sentir tudo aquilo de novo.
A risada estranha, o cheiro de cigarro e fumaça, aquelas mãos, aquele toque...

Arte Cheia, Coração Vazio - ErrorInk.Onde histórias criam vida. Descubra agora