Prólogo

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Primeiro Ele tira sua identidade, depois altera sua percepção de tempo e, por último, amplifica todas as suas dores. A morte aqui é um presente, o maior dos alívios.

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PRÓLOGO

Minha mão direita pendia à beira do abismo. Sob meu corpo, o toque de mil pedregulhos pontiagudos começou a me incomodar. Meu punho enfraquecido, totalmente à mercê da gravidade, fazia a ponta dos dedos seguir apontando para as trevas densas. Estava inerte há não sei quanto tempo. Aliás, o tempo foi a primeira noção que perdi aqui.

Estive adormecida, não entendo como, sobre um terreno rochoso, uma cama hostil, áspera, onde nem mesmo os insetos ousavam viver, repleta de pedras de todos os tamanhos, mas todas com um formato semelhante, como adagas mal amoladas. Apenas alguns centímetros me separaram de uma queda sem fim. Um sopro quente subia constantemente daquele despenhadeiro, em intervalos perfeitamente sincronizados. Minha mente, mesmo confusa e imersa naquelas profundezas, não ousava cogitar o que lá embaixo existia.

Um único feixe de luz me alcançava, porém forte como o próprio sol, me fez franzir o rosto. Era como se a luz fosse enviada para me despertar, como se Ele tivesse cansado de me ver dormir. Retirei minha mão direita da borda e usei-a para me erguer, ignorando a dor que as pontas das rochas causavam em meus joelhos.

Não importava em qual direção olhasse, haviam apenas rochas. O teto sobre minha cabeça era irregular, como pedras que ora apontavam para baixo, ora formavam desenhos aparentemente sem significado mas que de alguma forma me despertavam uma agonia profunda. A única exceção era a pequena abertura, por onde surgia aquele forte feixe de luz, algo me dizia para seguí-lo, mas parte de mim insistia em temê-lo, como se me dissesse que ali seria ainda pior.

Apesar da relutância, meus pés descalços seguiram rumo àquela única esperança. Conforme caminhava, o terreno ficava mais plano. Deixei os pedregulhos para trás e rumei na mesma direção até que, envoltos na penumbra, duas silhuetas cresciam em minha direção. Parei e deixei que os rostos fossem revelados pelo feixe.

Eles usavam túnicas iguais. Foi apenas neste momento que notei que uma peça idêntica cobria meu corpo. Nunca a vi antes. Fios grossos de lã entrelaçados formavam uma veste feita às pressas, uma bata bege que cobria até a altura de minha panturrilha e escondia bem os meus ombros. Por baixo dela, nada mais. Mesmo que nenhuma vergonha estivesse exposta, na ausência de qualquer roupa íntima, me senti nua.

— A senhora está bem? Me parece assustada. — A primeira pessoa tocou-me no braço. Um rapaz jovem, de aparência agradável e nariz um tanto avantajado, daqueles bonitos o suficiente para posarem em quadros, cujo rosto harmônico e cabelos negros perfeitamente alinhados, prendiam instintivamente a nossa atenção. Ele tinha olhos grandes que demonstravam uma preocupação genuína comigo.

— Ela deve ser nova. — Disse a mulher ao seu lado, sua túnica clara contrastava com a pele de ébano, alguns tons mais escura que a minha. Me vi perdida em seus lábios espessos por alguns instantes, imaginando quantas histórias tinham para contar. Ao contrário dele, ela manteve certa distância de mim, com as mãos rentes ao corpo, demonstrando receio. — Ela tem olhos de uma novata.

— Casa... — Foi a única coisa que consegui pronunciar de imediato. — Preciso ir para casa.

O olhar de ambos sobre mim expressavam pena.

— Deixe-me ver... — O homem tocou-me na mão, afagando-a. — Eu me chamo Verme. Esta é Macla — Apontou para a outra. Qual o seu nome?

Aquela pergunta me pegou de surpresa. Mas não como a sensação que tive logo em seguida. Meu nome era a informação mais fácil de acessar, algo básico e simples de responder. O esforço para lembrar me encheu de desespero. Conforme acessava o mais profundo de minhas memórias tudo vinha à tona: minha família, minha casa, minhas lembranças e vivências... lembrava-me de tudo, menos do mais básico: meu nome.

Vale dos CondenadosOnde histórias criam vida. Descubra agora