O amor nunca morre

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Passos ágeis espreitavam os arredores da mansão, apertando a bainha do vestido azul, ela observava calmamente o jovem abaixado sobre as estátuas, ele estava arrancando ervas daninhas. Um arrepio percorreu a sua nuca quando viu os vultos que cercavam os arredores, engoliu a sensação ruim em seu estômago, observá-lo era uma das dádivas que tinha para si. Um olhar seu, era tudo que ela precisava, ansiava que ele a notasse, que ele a fizesse sua. Respirou lentamente, segurando o ar em seus pulmões enquanto notava suas mãos fortes trabalhando contra as plantas.

Com um balde e uma espécie de bucha, ele se flexionou e começou a lavar os pés da estátua. Invejou cada toque e carícia que aquela mísera peça de mármore recebia. Ele sempre cuidava daquela em específico, como se ela cativasse um apreço do garoto. Cada batida de seu coração e pensamento deviam permanecer única e exclusivamente a ela, não a essa carcaça de mármore. Desde criança ela escutava os rumores e lendas que permeavam a mansão Astley, ela amava cada pedacinho de sua história. Havia se matriculado em História na faculdade só para absorver mais informações daquele mundo isolado.

一 Vai ficar aí por muito mais tempo? Estou começando a me cansar de suas visitas repentinas, não costumo ser tão generoso assim. 一 Ela engoliu em seco, espreitando para fora de seu esconderijo, as mãos suadas alisaram desesperadamente o amarrotado do tecido sobre o corpo. 一 O gato comeu a porra da sua língua? Eu aprecio o silêncio, mas, sinceramente, não estou a fim de falar com as paredes hoje.

Seu olhar tempestuoso varreu seu corpo, ela quase sentia a necessidade de se encolher, mas havia esperado tanto tempo por isso. Ele sabia que ela existia, ele havia a deixado ficar, agitou as mãos sobre os cabelos loiros encaracolados, os lábios em formato de coração exibindo um sorriso genuíno.

一 Sinto muito, senhor Astley, eu só... Aprecio muito o seu jardim. 一 E você, também, pensou, contudo sentiu que não era adequado compartilhar suas verdadeiras intenções com ele. Hunther Astley III era um mistério e ela amava enigmas. 一 Gosto da estética do local também, é um marco da história de Nexus que reside na atualidade.

Caminhou calmamente até alcançar o garoto, olhou ao redor, tentando desviar os olhos do peito esculpido, da mandíbula tensionada e de seu olhar hipnotizante. Um homem de verdade, era isso o que ele era, saído diretamente dos livros para assombrar suas memórias mais profanas. Deus devia odiá-la e ela sabia que estava condenada ao inferno assim que colocou seus olhos em Hunther.

一 Seja útil, pelo menos, não estou aqui para escutar suas baboseiras femininas. 一 Ele atirou a bucha diretamente sobre sua face enquanto se levantava. 一 Comece esfregando o limo, bem que estamos precisando de uma empregada aqui mesmo. Qual seu nome, faxineira?

Sua risada de escárnio reverberou pelo jardim enquanto ele a media da cabeça aos pés. Ficou atônita, então os boatos sobre ele ser um tirano eram verdadeiros? Mas isso não diminuiu sua motivação, poderia usar o trabalho como um pretexto para ficar por perto. Obedeceu enquanto ajoelhava sobre os pés da estátua, exatamente onde ele estava. Olhou para cima, a expressão piedosa da estátua, era como se ela lhe dissesse: fuja daqui, o mais rápido possível. Riu consigo mesma, apenas ignorando todos seus alertas racionais, e começou o que lhe foi pedido.

一 Eu me chamo Pandora. Enfim... Eu sou historiadora, estou pesquisando mais sobre a história dos Astley, realmente aprecio a forma como se mantiveram por toda história. São poucas as famílias reais que permaneceram até a atualidade. 一 Disse enquanto esfregava a estátua, fazendo uma prece mental para que ele a respondesse, o som de sua voz era tão bom. Quase sussurrava as palavras para ele, já havia percebido que o som o incomodava, queria representar várias coisas para ele, mas incômodo não era uma delas. 一 Ficaria feliz em poder observar tudo isso de perto.

一 Posso lhe garantir, Pandora, não há merda alguma sobre os Astley que contribua para algo nessa cidadezinha. Sinto lhe dizer, mas suas buscas são falhas, não tenho interesse algum em te manter aqui. Achou mesmo que eu iria contratar uma desconhecida para trabalhar em meus aposentos? Você é muito burra, isso sim. 一 Desdenhou, as mãos passando pelos seus cabelos desgrenhados, ele estava puto. Algo dentro de si retorceu, suspirou enquanto soltava a bucha no chão e se levantava. Agarrou sua nuca e forçou seus olhos nos dele, um tapa estalado soou e sua mão ardeu. 一 Que porra é essa? Não encoste essas suas mãos sujas em mim, eu não disse que você podia tocar algo além das estátuas.

一 Eu, eu, por favor, eu esperei isso por tempo demais, Hunther. Nós podemos recomeçar, eu posso te mostrar o quanto sou boa, sou completamente obcecada por você. Me veja, uma vez em toda sua vida, olhe para mim. 一 Ignorou a ardência da sua mão enquanto o agarrava novamente, os lábios colaram nos dele, impedindo-o de falar qualquer coisa. O devorou por completo, como se ele fosse a sua última refeição em muito tempo. 一 Por uma noite, me mostre o que você fez com todas as que vieram antes de mim, é meu último desejo. Por favor.

Seus lábios sôfregos roçaram contra os dela, ela acabara de ser sentenciada a sua morte. Sentia isso no fundo de seu ser, mas se as lendas estivessem certas, poderia retornar e ficar ali pela eternidade, ele só precisava dizer sim e ela seria sua, sua pela eternidade. Voltou para realidade ao ser empurrada contra a estátua, o olhar de nojo que ele lhe deu partiu seu coração em mil pedaços, uma adaga entrando em sua carne seria mais prazerosa do que aquele sentimento que estava se instaurando ali. Rejeitada, ela fora rejeitada.

一 Suma da minha propriedade, saia daqui, eu não sou um idiota irracional que vou ceder aos seus fetiches de musa do romantismo. Guarde essa tolice para um homem qualquer, eu não quero te ver espreitando nunca mais. É o meu último aviso, fique longe da minha casa, fique longe da floresta e de tudo que a cerca, não preciso dessa sua obsessão de colegial. 一 Chutou o balde de metal, a encharcando, enquanto se virava e saía em direção a mansão, o seu último olhar repulsivo a deixou ali, estática, sem conseguir proferir qualquer palavra sequer. O ódio a consumiu, girou o corpo e correu em direção aos jardins, seguindo o caminho tortuoso.

Correu até sentir o ar se esvair de seus pulmões, parou somente quando os corredores de espinhos a cercaram, um labirinto. Estava terrivelmente perdida, os espinhos rasgavam sua pele e o sangue vertia por entre as feridas abertas. Chorou de dor, de cansaço, de tristeza pelo seu amor. Ela o teria de qualquer maneira, a última palavra seria a sua, viraria esse jogo, ela mesmo selaria o seu destino. Removendo a adaga escondida na cinta liga de suas coxas, fez seu último pedido a deusa do amor, ele tinha que ser seu.

Fincando a espada em seu coração, seu corpo se derramou por entre o mar de espinhos, no seu suspiro final só conseguia pensar em uma coisa: Hunther. Por favor, que ele seja meu, que ele seja meu por toda a eternidade.

一 O meu corpo irá padecer, mas o meu amor por você nunca morrerá. O amor nunca morre, Hunther. 一 Disse em seu último suspiro, como se entoasse uma maldição.

E assim ela ficou, se tornando mais um dos fantasmas da mansão Astley. Ela vagueia por todos os quartos, o observa dormir, às vezes, quando Otto não está, ela se deita ao seu lado e vive a vida que criou em sua mente corrompida. Estava sempre por perto, sempre junto a ele, da maneira que sempre quis e sonhou. Ela o assombrava. 

Hunth YouOnde histórias criam vida. Descubra agora