Bebendo até me esquecer do meu próprio nome, foi assim que eu morri. Sentado em uma poltrona surrada do casebre menor, me encontrei com o deus da morte, mas condenado a passar os dias nesse mundo cruel eu fui, ou pelo menos pensava isso. Eu ainda me lembro de você, da manhã do nosso falso casamento, o quanto eu estava nervoso e sentia as entranhas se revirando só de pensar que esse dia finalmente havia chegado. Seu terno branco culminava na versão mais perfeita que meus olhos enxergaram em vida, a pele escura como a noite sendo realçada assim como uma turmalina na neve. O cabelo em um corte militar escovado, o sorriso exemplar, é assim que me lembro de você, meu único e verdadeiro amor, Zaire. O amor proibido, escondido do mundo, escondido dos céus, o amor exilado que permeia toda minha eternidade.
Na Primeira Grande Guerra, no ano de 1914, eu estava lá, mas meu pensamento sempre esteve ao seu lado. Lutei o máximo e, diferentemente de meus amigos, consegui retornar. Claro, um pouco menos atraente do que fui, com alguns pedaços da alma para trás, mas mesmo assim você me esperou, me amou e me acolheu como se fosse a primeira vez. O ser superior foi muito bom comigo, me permitiu voltar até você muitas vezes, eu tive a melhor vida que um homem poderia ter, ao seu lado. Nos conhecemos na mansão Astley, um lugar tão sombrio que virou o palco de nosso amor. Eu era o caseiro, responsável por zelar pelos artefatos do jardim e cuidar das estátuas, enquanto o jovem Zaire era o jardineiro. Nascemos e fomos criados aqui, sempre brincamos juntos, sempre estive ao seu lado, nunca estivemos separados até a fatídica noite em que ele descansou nos braços de Morfeu.
Era dia trinta e um de outubro, o ano de 1918 tinha colocado fim à guerra, eu estava no auge dos meus vinte e dois anos, Zaire tinha vinte na época. As rosas floresciam marcando o início da primavera, o cheiro inebriante envolvendo todo o local, suas pás e músculos trabalhando a todo vapor, era a época que Hunther mais gostava e mais detestava. O garoto era sombrio, eu suspeitava que ele desconfiava do meu envolvimento com Zaire, temíamos que o jovem Astley nos separasse, mas o que ocorreu nos dias seguintes à morte de Zaire me surpreenderam. Parei de observar o meu amante para notar a presença imponente de Hunther sobre o local, ele se abaixou ao lado de Zaire como se estudasse o que o rapaz fazia, aprendendo em silêncio cada etapa.
Zaire lhe mostrava como adubar, cuidar e manter o solo rico viável para as roseiras. Pude notar, pela primeira vez, um brilho de alegria sobre os olhos do jovem Astley, mas assim como rapidamente ele veio, logo se foi. Dando batidinhas no ombro dele, ele se levantou e se aproximou de mim, sua voz grave ecoou pelo jardim, desviando a atenção de Zaire que me deu um sorriso ladino por cima dos óculos redondos, as orbes verdes refletindo a cumplicidade que compartilhávamos.
一 Impecável, Zaire e Nick, impecável. 一 Disse enquanto se afastava, não pude conter um sorriso enquanto removia a boina e assentia em direção ao jovem. Ele estava aqui desde que nos conhecíamos por gente, o curioso caso de Hunther Astley, ele não envelhecia. 一 Coloquei alguns pães na cesta, pode pegar e dividir com o senhor Zaire, feliz dia das bruxas para vocês.
Zaire se levantou rapidamente, presumi que iria dar feliz aniversário ao nosso patrão, como era de praxe, contudo Hunther já havia sido perdido de vista. Dei de ombros enquanto olhava para ele, ele não gostava de ser parabenizado, de qualquer forma. A cada aniversário o senhor Astley parecia mais desanimado e cabisbaixo, talvez se ele tivesse um amor assim como eu tinha Zaire, ele não se sentiria assim. Naquela noite nos sentamos próximos ao coreto, desfrutando a cesta de pães e frutas, trocando sussurros e carícias proibidas. Eu o pedi em casamento naquela noite, mesmo sabendo que seria impossível que isso se concretizasse naquela época, o que tínhamos ia além de um simples compromisso matrimonial, as normas da sociedade não iriam nos parar.Sobrevivemos até o ano de 1930, contradizendo as estatísticas de mortalidade da época. Zaire ia muito para a cidade, a porção afastada da mansão, lá ele comprava adubo e outras coisas que abasteciam a casa, eu o acompanhava na maioria das vezes, era o nosso refúgio diário e uma tentativa discreta de nos mantermos na sociedade. Da última vez, ele me prostrou de ir, o surto de escarlatina havia começado, corpos varriam as ruas, as perdas inestimáveis. O senhorio disse que não seria necessário restabelecer os estoques, mas Zaire insistiu e foi da mesma maneira, eu devia ter te interrompido ou ido em seu lugar, as coisas poderiam ter sido diferentes.
Em poucos dias ele adoeceu, as bolhas adornavam sua pele, feridas horríveis surgiram e sua temperatura era instável. O senhor Hunther cuidou de todas suas mazelas, fazia compressas frias sobre sua testa, tentava alimentá-lo, ele fez de tudo por Zaire. Uma atitude que me chocou, confesso, ele sempre me dizia: "Se adoecer, não conseguirá cuidar dele, será mais um fardo, deixarei ficar com ele, mas não exceda o tempo. Não se preocupe comigo, isso não me afeta, por mais que eu deseje trocar de lugar com ele". Na noite do dia 31 de outubro de 1930, Zaire faleceu, nos braços de Hunther, foi quando eu vi o jovem Astley chorar pela primeira vez. O sentimento de culpa, remorso e impotência, algo que ele não havia demonstrado nem na morte de seus pais, varriam todo seu corpo, mente e alma. O meu coração parou de bater nesse dia, junto com o seu.
Enterramos Zaire no coreto, seu local favorito do Jardim das Hespérides, só eu e Hunther estávamos no enterro. Naquele dia, o senhorio se virou para mim, e, pela primeira e última vez na vida, eu consegui ter um vislumbre de sua verdadeira alma.
一 É impossível mensurar o luto, Nick, mas posso lhe dizer que todos os seres vivos são dignos de serem amados, e assim você o fez, você o amou. Ele teve a honra de dividir a vida com você, eu desejo que a vossa alma fique em paz, não se prenda a partida, se prenda aos momentos únicos e felizes que compartilharam. Suas memórias estão eternizadas em sua mente e em seu coração, meu caro. 一 E então, ele me tocou, a pele fria apertou meu ombro descoberto pelo casaco, por mais gelado que estivesse, eu senti todo o calor, eu senti o que ele queria passar.
Não consegui seguir seus conselhos, apenas definhei nesse infinito poço solitário, supliquei para que Hunther tirasse minha vida, eu sabia que ele não era humano, ele me ignorava. Aos poucos me aproximei dele, bebíamos juntos e conversávamos sobre a banalidade da vida, foi no final de tudo que consegui entender, ele era apenas um garoto de catorze anos preso em um corpo adulto, tão vulnerável quanto qualquer outro mortal.
Era manhã de 31 de outubro de 1934, eu parecia um gambá bêbado, Hunther me banhou, me deu água e comida, um jovem cuidando de um velho de sessenta anos. Fechei meus olhos como de costume e apenas apreciei mais uma das histórias que ele lia, contos do Olimpo. Aquela foi a última vez que o vi em vida e a primeira vez que entendi o meu verdadeiro propósito. No além tive um vislumbre de Zaire, em outro corpo, em uma vida nova, feliz, assim o deixei ir, viver a sua nova experiência na terra. Depois que você se foi, eu resolvi ficar, resolvi permanecer na mansão Astley, mesmo em sua ausência. Depois que você se foi eu descobri que não precisava partir para te ter ao meu lado, você sempre estaria vivo em cada pedaço da minha alma e do meu ser. Depois que você se foi, percebi que meu verdadeiro motivo era permitir que Hunther conseguisse escutar as palavras que me disse no seu dia final, Zaire.
一 Todos os seres vivos são dignos de serem amados, Hunther.
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Hunth You
ParanormalTW: violência, luto, depressão, perseguição, dark romance A mansão Astley guarda seus segredos, mas o mais incompreensível é o seu único residente vivo, Hunther Astley III. OBS: História de um personagem de RPG de minha autoria, cada conto é comple...