Um pequeno desvio

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Estava quase no horário da aula, Dahyun sabia disso, mas mesmo assim acabou por se dirigir até o prédio grande da avenida principal do subúrbio porque não resistia a tentação. Em seu celular ainda estava aberta a reportagem sobre um incêndio em larga escala que havia se iniciado no início daquela manhã. A origem não havia sido identificada e a evacuação fora falha deixando assim diversas pessoas presas lá dentro.

   Mesmo sendo ruim, a reportagem não fazia jus ao tamanho do estrago. Ver de perto era avassalador e assustador, ainda mais quando parava pra pensar que haviam pessoas lá. O redemoinho espesso e escuro de fumaça tomava o céu como quem tem fome, devorando o azul limpo sem piedade, pesando no ar, nos pulmões; mesmo mantendo a distância de segurança demarcada por uma faixa que circulava o edifício, Dahyun sentia seus olhos lacrimejarem e o cheiro forte de queimado.

  Estava crepitando; fuligem e pedaços pequenos de concreto despencavam dos andares mais altos, gritos de desespero e terror poderiam ser ouvidos por todo o quarteirão e embora o mais sábio a se fazer naquele momento fosse manter a distância da construção que poderia desabar, cidadãos curiosos a cercavam desesperados. 

   O sentimento de urgência era compartilhado, mas haviam apenas duas viaturas e uma ambulância, além de dois ou três caminhões pipa nas proximidades. Dahyun duvidava que fossem força o suficiente para conter aquele desastre. A magnitude era grande demais para ser contida mesmo se houvesse uma força tarefa real criada pelos comuns.

  Ela não sabia o que fazer.

   Sentia que devia algo. 

   Afinal quem tem poder para mudar uma situação de tamanho sofrimento deveria usá-lo, ou seria escoria, seria omisso. Era quase como se fosse responsável também.

  Seu coração apertado pedia para que entrasse lá e salvasse o máximo de pessoas possível, porém a ideia de se revelar um legado ao mundo não lhe era tentadora nem de longe.

  Alguém vai vir... Aquilo parecia uma mentira dado o tempo que o incêndio já se estendia. O Pilar vai vir, alguém tem que vir!

   Sua garganta estava fechada e as mãos tremendo. O impasse a consumia assim como o fogo que a cada segundo tomava mais do edifício. 

   Foi quando pela visão periférica acabou por avistar uma movimentação sútil vinda do lado esquerdo, a parte menos movimentada no meio daquele caos todo. Uma garota acabará de cruzar a faixa furtivamente e passar quase despercebida. Ela se abaixou, cruzou e por um segundo olhou para trás apenas se certificando de que não havia sido pega. Mas havia, por Dahyun.

   Seus olhos se encontraram.

   Os dela eram castanhos de um tom bem claro e amadeirado, seriam delicados se não estivessem tão decididos.

   Dahyun teve um impulso urgente de interferir, mas antes que pudesse a garota já havia seguido seu caminho adentro da destruição. 

   Antes as vítimas não tinham rostos, não tinham olhos expressivos e nem histórias; mas agora que havia presenciado a garota se pôr em risco, não pôde evitar. Seu coração condescendente a empurrou e um segundo depois Dahyun havia seguido pelo mesmo caminho. Se esgueirando na multidão até a parte calma e cruzando a faixa, adentrou o mesmo beco lateral que a garota misteriosa sem ser notada por mais ninguém.

   Chegou bem a tempo de vê-la forçando uma porta de emergência, que ao ceder e ser aberta liberou uma rajada escura de fumava e calor, além do barulho alto. Em resposta a isso a garota tampou o rosto com o antebraço e ultrapassou sem sequer hesitar.

    Dahyun a seguiu perplexa. Não conseguia entender como um comum estava se colocando em perigo daquela maneira como se não fosse nada. Não que se achasse superior ou algo parecido, pelo contrário, a maior parte de sua vida havia desejado ser uma simples humana comum, mas o pensamento de ser tão frágil e mesmo assim ir voluntariamente para um prédio em chamas prestes a desabar não parecia nada além de um ato de completa insanidade.

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