"O Mundo Além das Muralhas"

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Naquele tempo, eu não passava de uma criança, jovem demais para entender o fardo que o destino coloca sobre os ombros dos que nascem em castelos de pedra. O vento nos meus cabelos e a liberdade de correr pelos corredores da Fortaleza, sem a menor preocupação com os olhares severos das amas ou os sussurros das senhoras, eram tudo o que eu conhecia. Com minhas pernas pequenas e ágeis, eu percorria os corredores como uma sombra, e meu riso ecoava como música por entre as paredes de pedra fria, enquanto as servas tentavam, em vão, acompanhar minha energia indomável.

Os tapetes grossos abafavam o som dos meus passos, e eu tinha a certeza de que elas jamais me encontrariam. As amas sempre me diziam que uma verdadeira dama deveria se comportar com dignidade, mas naquele dia, não havia nada que eu desejasse menos. Eu queria ser selvagem, livre como um lobo no ermo, um falcão solitário rasgando o céu cinzento.

Passei correndo pelo salão principal, onde os estandartes de nossa casa pendiam pesados, como testemunhas silenciosas do meu destemor. Eu mal olhei para trás enquanto seguia em direção ao jardim do castelo, um refúgio que eu conhecia melhor do que qualquer um. As árvores se erguiam altas, majestosas, seus galhos estendidos como braços acolhedores. Com a destreza de uma gata, subi em uma delas, o toque áspero da casca de carvalho era reconfortante sob meus dedos pequenos. Lá em cima, no meu refúgio secreto, eu estava segura, invisível aos olhos do mundo.

As servas passaram apressadas por baixo, suas vozes abafadas, cheias de preocupação.

— Onde ela foi parar? — perguntou uma delas, a frustração evidente em seu tom. — Se a encontrarmos suja novamente, a rainha não vai gostar.

Eu segurei o riso, satisfeita com o meu esconderijo. O mundo ao meu redor era verde e vivo, um manto de folhas me cobria, e eu me sentia invencível. A sujeira, o musgo, a terra entre meus dedos, tudo isso me aproximava do mundo selvagem que eu tanto admirava. Eu não era uma dama, não naquele momento. Eu era algo mais, algo que só a natureza poderia entender.

Então, ouvi vozes, suaves e distantes, mas distintas. Elas não eram das servas; essas vozes carregavam uma melodia própria, uma música doce que eu nunca tinha escutado antes. Curiosa, deslizei para um galho mais baixo, procurando por aquelas que conversavam. Duas figuras estavam perto do riacho que cortava o jardim, de costas para mim.

Uma delas eu reconheci imediatamente. Ellyn, minha tutora, estava ali, com seus cabelos castanhos sempre presos em um coque perfeito. Mas a outra mulher, essa eu nunca tinha visto. Seus cabelos dourados caíam em cascata até a cintura, e o vestido simples que usava movia-se suavemente ao sabor do vento. Algo na maneira como ela se portava, serena e confiante, prendeu minha atenção.

— Dizem que o sol em Dorne brilha de uma forma que não se vê em nenhum outro lugar — a mulher dourada falava com a voz cheia de encanto, quase poética. — A luz é mais quente, mais intensa, como se as próprias areias fossem feitas de ouro.

Eu me inclinei mais para a frente, tentando captar cada palavra. Nunca tinha ouvido falar de Dorne, mas as descrições pintavam imagens em minha mente, de terras distantes e exóticas, muito além das muralhas do castelo.

— Gilly... — Ellyn falou, com um sorriso que parecia quase desconhecido em seu rosto. — Nossos tios estão bem?

Gilly. O nome era familiar, a irmã de Ellyn. Fiquei olhando, fascinada, enquanto a mulher assentia.

— Sim, os tios estão bem — respondeu Gilly, com um tom de nostalgia que pesou no ar. — Tio Gerold ainda tenta cultivar suas vinhas, mesmo sabendo que o clima daqui nunca se comparará ao de Dorne. E tia Marla... está ocupada com seus bordados, como sempre. Eles perguntaram muito por você.

Ellyn suspirou, um som cheio de alívio e saudade.

— Fico feliz em saber — disse, seus olhos vagando para além da irmã, como se tentasse enxergar Dorne através das paredes do castelo. — Não vejo a hora de visitá-los novamente, mas as responsabilidades aqui… 

Ela deixou a frase incompleta, o peso das obrigações evidenciado na pausa.

Eu estava em silêncio absoluto, absorvendo cada palavra. Dorne, parecia um sonho distante, quase irreal, comparado ao mundo em que eu vivia. E Gilly, com seu olhar repleto de histórias não contadas, parecia ter visto mais do que qualquer pessoa que eu conhecia.

— Dorne é… diferente de tudo que já vi — disse Gilly, e sua voz ganhou um tom sério. — As pessoas lá vivem de um modo que nunca imaginei. São livres, selvagens. Seguem seus corações, mesmo que isso os leve a lugares perigosos. Às vezes penso que... nós aqui, somos tão presos às tradições, às regras.

Ellyn a fitou com uma expressão que misturava compreensão e algo mais, talvez uma preocupação que só irmãs compartilhariam.

— Eu entendo o que quer dizer, Gilly, mas as regras são necessárias. Elas nos mantêm seguros, mantêm a ordem. E agora, mais do que nunca, o reino precisa de ordem.

— Mas e o coração, Ellyn? — Gilly retrucou, sua voz suave, mas firme. — O que acontece com ele quando vivemos assim, presos?

Ellyn não respondeu de imediato. Seus olhos seguiram o fluxo do riacho, como se a água pudesse lhe dar uma resposta, uma direção a seguir.

Eu, naqueles dias, não tinha plena compreensão do que aquelas palavras significavam, mas podia sentir a importância do que estava sendo dito. As palavras de Gilly ressoaram em minha mente como uma canção triste, plantando uma semente de curiosidade que só cresceria com o tempo.

Enquanto as duas irmãs continuavam sua conversa, uma brisa suave balançou as folhas ao meu redor. Foi o suficiente para me trazer de volta ao presente, e percebi que era hora de descer. Minhas aventuras haviam me levado a uma nova descoberta — não apenas sobre os segredos da Fortaleza, mas sobre o mundo além de seus muros.

Com cuidado, comecei a descer da árvore, tão silenciosa quanto possível, tentando não atrair atenção. Sabia que havia invadido um momento íntimo, mas também sentia que algo dentro de mim havia mudado para sempre.

Quando meus pés tocaram o chão, corri de volta ao castelo, o coração batendo forte no peito. O sol já se punha no horizonte, tingindo o céu de laranja e rosa, e naquela noite, eu sabia que sonharia com dunas douradas e com a liberdade de seguir meu próprio coração, assim como Gilly.

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⏰ Última atualização: Aug 11 ⏰

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