28. DEUS EX MACHINA

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    VIVER DURANTE TANTO TEMPO em um país estrangeiro não a fez esquecer das suas raízes por parte de pai, onde tinha uma família tão numerosa quanto misigenada — como uma clássica família brasileira — com quem mantinham contato frequente por ligação e viagens de férias ocasionais. O tempo que ficou adormecida dentro de Ajhai serviu-lhe para acessar as mais profundas e turvas lembranças sobre sua ascendência sul-americana.

A mãe de seu pai, vovó Irací, tinha a espiritualidade muito aflorada por ter crescido em uma tribo indígena antes de casar-se com seu avô. Ela sempre contava aos netos lendas e histórias antigas, enquanto enchia-os de comida sem perder a chance de dizer o quão magro estavam longe dos cuidados dela.

Com os anos distantes algumas lembranças sobre ela ficaram enevoadas no seu subconsciente, porém, agora apresentavam-se vivídas como a luz do dia.

— Quando se enxerga beleza em todas as criaturas, consegue ver o mundo através delas. — Irací mumurrava passando os dedos por seus cabelos, quando você era apenas uma menininha rechonchuda — Você consegue não é, Pirilampinha? Sim, sim, Guaraní abençoou você, benção muito, muito rara.

Ela sempre pareceu ter grande curiosidade ao vê-la interagindo com os animais da fazenda da família, andando para todo lugar com uma arara-canindé empuleirada no ombro.

— Você ainda é muito nova, mas quando crescer você vai conseguir. Vai encontrar o animal certo pra você. — Irací parecia falar aquilo mais para si mesma do que para você, balançando a cabeça positivamente. — Não aves como sua vó, outro tipo, sim, um tipo diferente, talvez.

Na época você não entendeu o que ela quis dizer e durante muito tempo sequer pensou nisso, até que essa lembrança eclodiu das profundezas da sua memória; Guaraní, o deus indígena do sol e criador dos animais, “ver o mundo através delas”, com isso, vovó Irací quis dizer literalmente? Entrar na mente dos animais? Essa era a suposta benção de Guaraní?

Pensando bem, a arara de estimação dela nunca esteve presa ou com asas cortadas, e também não nasceu em cativeiro, mas nunca foi para muito longe dela. E houve a outra vez, em você se perdeu com seu primo na mata e quem os encontrou foi justamente essa ave, pousando suavemente perto de vocês para minutos depois sua avó aparecer entre a vegetação e levá-los para casa. Havia um vínculo forte entre mulher e pássaro, o mesmo tipo de vínculo entre garota e serpente.

Que loucura, sinceramente. Quem acreditaria que você tinha algum tipo de poder maluco que a permite compartilhar a consciência com os animais? Especificamente com Ajhai. Os sonhos estranhos que tinha em que via a grama abrindo-se diante de você, o instinto para julgar as pessoas e pressentir perigo, a sensação estranha de ter um sentido extra.

Aquela habilidade sempre esteve ali, dormente.

Você mesma mal conseguia acreditar, mas se Takemichi podia viajar no tempo então o que exatamente era impossível? Certamente não o veneno mais letal do mundo ser milagrosamente a resposta para fazer seu corpo funcionar de novo.

Os três garotos travam ali sem reação, pois foi você mesma quem segurou o pulso de Izana. Levando em conta o que ele mesmo tinha dito minutos atras da sua dificuldade em realizar certos movimentos; como você estava se levantando da cadeira sozinha sem nenhum problema? E sem parecer sentir a dor da picada?

Chifuyu e Takemichi deram alguns passos para trás atordoados, enquanto Izana continuava com o braço detido pelo seu aperto, você o soltou devagar ao mesmo tempo que as presas de Ajhai soltaram no seu pescoço permitindo que dois fios de sangue escorressem pela sua clavícula, manchando-lhe as roupas. Aparentemente satisfeita, a serpente deslizou pelos seus ombros encontrando uma posição melhor de apoio, acabando por afastar um pouco a gola da sua blusa de algodão, revelando sua tatuagem tão vibrante quanto antes.

CONSTANTE - Manjiro (Mikey) SanoOnde histórias criam vida. Descubra agora