Carol
O coisa mais linda foi o único bar com música ao vivo que encontrei na cidade. Parecia perfeito, tinha letreiros enormes e brilhantes que, se olhando de longe, pareciam um posto de gasolina ou um ponto de fast food. Era um prédio residencial cumprido no centro de São Paulo, quem passasse na calçada depois das dez da noite conseguiria ouvir a música baixinha saltando pelas janelas.
Durante o dia, as pessoas desciam as escadas com suas pastas empresariais e casacos muito longos, e durante a noite entravam pela porta da frente cobertos de paetê e delineado azul, com bags enormes de instrumentos ainda mais coloridos nas costas.
Um paraíso. Eu não tinha nada além de argolas pequenas e uma camiseta novinha de banda para me identificar, talvez as botas denunciassem o meu amor atemporal por música de rua, mas ainda assim me sentia deslocada logo depois de passar das cascatas de cortina para finalmente chegar na civilização.
Eu estava a menos de duas semanas em São Paulo, tinha um apartamento pequeno alugado há vinte minutos dali e já não aguentava ficar dentro daqueles cinco metros quadrados com uma tigela de macarrão instantâneo tentando adivinhar quem é o milionário.Foi quando eu a vi.
Uma regata rasgada nas pontas, calça de couro quase verdadeiro demais e botas intencionalmente surradas. O esmalte laranja forte para combinar com o baixo pendurado no seu pescoço e sustentado pelos músculos contraídos na altura do estômago. Naquela noite, eu encarei Talia como se não soubesse respirar. Meus lábios unidos e tremendo um contra o outro, buscando alguma coisa que pudesse amenizar o que estava sentindo escutando o groove saltar dos seus dedos para o alto falante. Hipnotizada.
A plateia parecia mais preocupada com os solos exagerados de guitarra que um descabelado sem camisa fazia já na frente do palco, jogado no chão com as costas arqueadas para trás. Mas eu a vi. Uma mecha mais escura do que as outras se desprendendo para grudar nos seus lábios possivelmente cobertos por gloss labial. E ela me viu também, e sorriu pra mim, e de repente eu já não me sentia tão estranha cravada como uma estaca na porta do bar. Porque ela tinha me visto. Porque eu era especial.
Eu fui andando devagarinho até mais perto do palco, dentro de mim uma certeza de que quanto mais perto eu chegasse, mais real ficaria. Meus pés se moviam no automático, ignorando os garçons e os casais apaixonados voando sobre a pista de dança.
Infelizmente o meu não era o único corpo se movendo no automático naquela noite.
— Ai merda! — foi o único som que escutei antes de sentir um líquido viscoso ensopar minha mais nova camiseta favorita — Meu Deus, me desculpa.
Tarde demais, o rosto de David Gilmour já estava coberto por batida de cereja com morango, o que me tornava oficialmente um frasco gigante de xarope do Pink Floyd com botas.
Isso com certeza deixaria uma marca.
Quando levanto os olhos na direção em que estavam os cabelos escuros e o baixo laranja forte, encontro um par de olhos culpados.
— Olha, foi sem querer, eu juro, eu... aimeudeus, porque eu tenho que ser tão desastrada.
O copo cor-de-rosa-quase-transparente na sua mão ficou pela metade, com pequenos cubos de gelo e cerejas flutuando por cima.
— Tudo bem — eu disse. Mas David Gilmour continuou ensopado contra o meu peito — Eu é quem não estava prestando atenção.
Ela sorriu pra mim com os lábios cor-de-rosa-quase-transparente. E antes de dar meia volta com seu meio copo, apontou para as minhas orelhas como uma turista impressionada e comentou:
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Morangos mofados
FanfictionLidando com os mistérios que envolvem a morte precoce de sua esposa Talia, Carolina se vê ainda mais intrigada ao deparar-se com uma jovem que não se lembra de nada sobre si mesma, mas parece conhecê-la como ninguém. Uma história onde as pessoas sã...