• O Silêncio do Novo Começo •

8 2 0
                                    

     (Jasmine)

Às vezes, a vida parece se desenrolar como um ciclo interminável, onde cada dia se funde ao anterior sem oferecer novas perspectivas. Esse sentimento de estar preso em uma rotina que não leva a lugar algum pode ser sufocante, principalmente quando os dias se estendem como sombras de algo que poderia ser, mas nunca é.

Já estamos  na última semana de outubro.  E o retorno das aulas 100% presenciais, que deveria trazer uma sensação de normalidade, acaba apenas sublinhando o quanto as coisas mudaram e o quanto a vida pode ser implacável. As dificuldades parecem se acumular, e o peso das responsabilidades torna o cotidiano ainda mais pesado. Consegui um emprego Graças ao meu pai,como secretária em uma seguradora de veículos, que pode ter sido um alívio financeiro, mas ao mesmo tempo é mais uma peça desse ciclo a qual eu não escolhi, mas que preciso viver.
Trabalhar em algo que não faz sentido para você, esforçando-se para sorrir e ser simpática enquanto carrega uma sensação de vazio, só torna o peso mais difícil de carregar.

Com o retorno das aulas nesta semana, minha rotina mudou drasticamente. Agora, o alarme toca às 6h da manhã, e eu me arrasto para fora da cama, tentando parecer minimamente apresentável. Esse esforço tornou-se meu principal incentivo para encarar o primeiro dia.

Dias como esse nunca me agradam. Só de pensar em ter que fazer novos amigos, ou ao menos tentar ser simpática, já sinto um frio na barriga. A única coisa que torna tudo mais suportável é saber que terei Dannie ao meu lado. Implorei para minha mãe me colocar na mesma sala que ela, e, mesmo assim, frequentarei a escola apenas nos últimos meses. Quando penso nisso, sinto vergonha de mim mesma.

Minha mãe não deu muita importância ao meu estudo até chegar um comunicado da escola, informando que eu deveria comparecer às aulas, ou então seria retida no 2º ano. Isso me forçou a voltar. A ideia de reprovar era um pesadelo tanto para mim quanto para minha mãe. Imagino o quanto ela me lembraria desse fracasso, ano após ano, e sinto um arrepio na espinha. Faço o impossível para evitar suas reclamações, porque, para ela, não existe a palavra "esquecimento". Pelo contrário, ela faria questão de lembrar o quão imprudente fui ao ser retida no auge da pós-pandemia.

Levanto e vou direto ao guarda-roupa, pensando na roupa ideal para hoje. Como o uso do uniforme não é obrigatório, posso escolher algo que me faça sentir mais confortável. Após alguns minutos de indecisão, optei por uma legging preta, um moletom bege e meu fiel All Star preto. Arrumei minha mala com a roupa do trabalho e o material da escola.
Desço as escadas correndo, pego a máscara e vou para o ponto de ônibus, que fica na rua de baixo da minha casa.

Assim que o ônibus chega, sou lembrada da única coisa que não sentia saudade: o ônibus lotado. Passo pela catraca e encontro um lugar onde posso me acomodar e colocar meus fones de ouvido. Em questão de segundos, a música "Dernière Danse" de Indila começa a tocar, trazendo um pouco de paz à minha mente. Essa música tem sido meu refúgio ultimamente. Depois de um tempo perdida na melodia, minha atenção é capturada por uma garota. Ela é baixa, com longos cabelos ondulados, vermelhos como fogo, e um jeito tão delicado de se comportar que me deixa intrigada. Como alguém pode ser tão naturalmente graciosa? Parece até que meus pensamentos influenciaram a próxima música: "Soldier, Poet, King" do The Oh Hello's.

Tudo nela exalava delicadeza, desde sua mochila rosa com flores até suas unhas pintadas de azul bebê. Ela parecia saíra de um livro, uma personagem perfeita em meio ao caos do cotidiano.

Sem perceber, já estou no meu ponto. Desço apressada e corro para a escola. Chego na secretaria e confirmo o número da minha sala.
Ao entrar, vejo que não há ninguém além do professor. A sala está vazia, exceto pela palavra "MATEMÁTICA" escrita em letras enormes com canetão vermelho no quadro. Era o meu pior pesadelo, materializado bem ali na minha frente.

Minha mente começou a correr, buscando maneiras de escapar: talvez eu pudesse inventar uma desculpa e dizer que entrei na sala errada, ou simplesmente não comparecer à aula. Ambas as ideias eram tentadoras, mas havia um pequeno problema: o professor já tinha me visto. Resignada, aceitei meu destino e fui me sentar.

Em questão de segundos, a sala lotou, intensificando meu desconforto. No fundo, eu implorava para não ficar sozinha, suplicando a Deus que não me deixasse desamparada no meu primeiro dia de aula. E, como se minhas preces fossem ouvidas, ela entrou.
Com seus longos cabelos negros e ondulados caíam sobre sua pele pálida, realçando suas roupas escuras com um contraste quase hipnótico. Seus olhos puxados revelavam suas raízes orientais, enquanto o delineado espesso e o liptint vermelho intensificavam sua aura enigmática. Mas o que mais me chamou a atenção foi o poder que ela exalava, a cada passo seu parecia pulsar ao ritmo de "I Am Woman", de Emmy Meli. Ela era empoderada, marcante, como uma força da natureza que não podia ser ignorada. Tudo nela irradiava mistério, como uma vilã de beleza inacreditável. E, ao conhecê-la, soube que ela seria minha vilã favorita, aquela que eu protegeria com todas as minhas forças.

Assim que seus olhos encontraram os meus, ela caminhou na minha direção, braços abertos, a surpresa estampada no rosto. A dor de ter me afastado de sua amizade me acompanhava como uma sombra desde que me mudei para outra cidade. Ir embora brigada foi um dos maiores erros da minha vida, e o arrependimento me corroía diariamente.

Quando ela me envolveu em seu abraço, senti como se o mundo parasse por um instante. A tensão que eu carregava se desfez, e a sensação de estar segura, de não enfrentar sozinha aquela sala cheia de estranhos, finalmente me alcançou.

— Resolveu finalmente aparecer na escola?-comenta Danny

Seu sorriso, radiante e verdadeiro que só Danielle tem, me mostrou que a raiva que ela sentia por eu ter partido sem me despedir havia se dissipado. O alívio em seu rosto era claro—como se o tempo, enfim, tivesse curado a mágoa.

CICATRIZES DO CORAÇÃO Onde histórias criam vida. Descubra agora