Existe um momento na vida, em que a única pergunta que paira sobre a sua cabeça é se estar vivo vale à pena. Nunca consegui uma resposta sincera pra isso, mas descobri que morrer não é uma opção tão melhor quanto achamos. Quando seu guarda-roupas já está apinhado de monstros e sob sua cama já não tem mais espaço, essas criaturas tão horrendas se misturam às pessoas do seu dia à dia, aos seus amigos, nos reflexos em que se olha, e quando menos espera, quando os pregos do caixão são batidos, elas são os vermes que vem te devorar.
Aos problemáticos como eu, morrer não adianta de muita coisa, muito menos quando você não consegue continuar morto.
-- PUTA MERDA! -- Taylor quase rolou para o chão com o susto. O quarto estava escuro, fervendo e úmido como se eu ainda estivesse naquele sonho. Naquele redemoinho de água enorme que tentava me engolir com todas as suas forças.
-- Ficou louca?! -- Esbravejou, recolhendo os lençóis que arrastou consigo para a borda da cama, acendendo o abajur amarelo do seu quarto. Como toda vez que o fazia, seu rosto pareceu vampírico, quase monstruoso, como as coisas que queriam me buscar no fundo do mar.
-- Foi só outro pesadelo idiota. -- Minhas mãos afundaram entre os fios empapados de suor de meu cabelo preto. Os lençóis, a colcha, as fronhas, tudo estava molhado.
-- É como dormir na mesma cama que um chihuahua. -- Reclamou, mais para si mesmo, apagando as luzes de novo. O cheiro de sal do suor me lembrava aquela praia escura, aquela energia pesada que rondava tudo até a areia. Não ia conseguir dormir, nem queria, na verdade. Dormir mais me cansava do que ficar acordada direto. E quatro e meia da manhã nem era tão madrugada assim para ser estranho eu estar acordada. Podia começar o dia com o pé direito, enfiar meias nos pés e aproveitar o suor para correr na rua. Ou podia tomar um banho, adiantar aquela série de televisão que tanto queria maratonar. Ou começar um café da manhã caprichado que tiraria o mal-humor que Taylor teria ao acordar. Ou... Ou... Ou... Ou...
Taylor se sentou na cama, de repente, atrapalhando meu raciocínio. Todas as vezes que levantava fazia a mesma coisa: penteava os cabelos para trás e os acomodava atrás das orelhas e então, se eu estivesse ali, se virava para me encarar, sempre no mesmo horário, sempre às 06:30.
-- Não vai levantar? Ainda dá para sair pela porta da cozinha, é o dia da Maria. -- Soprou, como de costume, jogando para mim o moletom que usei no dia anterior. -- Ela sabe que não ganha nada sendo uma dedo-duro.
-- Tem quase vinte anos, ainda dá pra ser dedurado aos seus próprios pais? -- Seu olhar severo me cortou no caminho, chutando meus tênis para perto do meu lado da cama.
-- Tenho treino hoje, não posso me atrasar outra vez. -- Eu amarrei os cadarços, com preguiça, sob sua vigilância apressada, sabendo que o irritava. Qualquer coisa o irritava. -- Luci, me faz um favor?
-- O que?
-- Não aparece no treino da tarde hoje, tudo bem? As pessoas... Elas...
-- Não entendem?
-- Eu tenho uma reputação à zelar.
Sem beijo de bom dia, sem abraço de despedida, sem sorriso. A única palavra de gentileza que ouvi veio da Maria, que me ofereceu um café e por um segundo fiquei tentada à me sentar àquela mesa luxuosa, recheada de frutas, bolos e tudo que há de bom e do melhor. Não sabia o que queria mais, que todos viessem e me tratassem como família, como nora e cunhada querida, ou ver a cara de Taylor sair do quarto e se deparar com sua família confusa e sua vida perfeita desmascarada. Melhor mesmo foi eu ir.
O ônibus cortava a neblina com pressa, ainda meio vazio, correndo para chegar ao sul da cidade, apanhar os trabalhadores e voltar ainda mais depressa como tinha feito três vezes desde as quatro da manhã. Esperança não era um lugar complicado de entender. Uma cidade de tamanho razoável, com casarões no Norte à beira da praia e barracos apinhados no extremo Sul à beira do rio salobro. Uma cidade portuária que ficava esquecida até o verão chegar e os turistas voltarem a encher as ruas.
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Luci Ferallia - A Esperança é Muito Branca
De TodoEsperança é uma cidade diferente para cada pessoa que passa por ela. Para uns o paraíso turístico mais requisitado para as férias, para outros o lugar onde um teto sobre a cabeça, um limão e uma superbonder na geladeira constitui um lar. Mas para aq...