Prazo de validade é motivo de repúdio

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ANNE SHIRLEY

O espelho refletia um rosto pálido e esguio, emoldurado por longos cabelos ruivos escuros. Anne observava sua imagem com uma mistura de tristeza e determinação. Vinte e dois anos. Uma idade avançada para uma mulher solteira naquela sociedade. A cada aniversário, a sensação de fracasso se intensificava. Havia também a horrível sensação de não pertencimento, pois ela estava próxima ao despejo; em breve, não poderia mais viver na casa onde cresceu. Sua vida inteira foi uma preparação para ser uma esposa, mas nunca chamou a atenção de pretendentes e agora estava na terrível situação de solteirona.

Qualquer mulher nessa condição procuraria um viúvo ou algum cavalheiro com alguma deficiência para se casar rapidamente, garantindo posses e evitando a extrema miséria. Anne suspirou, afastando-se do espelho. A imagem que via não era a de uma mulher realizada, mas sim a de uma sobrevivente. A vida a havia moldado de forma cruel, transformando-a em uma flor que desabrochou em meio à tempestade. Mas ela não se renderia. A luta por sua sobrevivência estava apenas começando. 

Com um nó na garganta, levantou-se e foi até a janela. O vento frio açoitava seu rosto, levando consigo os últimos resquícios de esperança. Mas dentro de si, uma pequena chama ainda ardia, alimentando o desejo de um futuro melhor.

Ela recebeu a proposta de sua tia para se tornar uma dama de companhia, o que lhe garantiria um emprego permanente. No entanto, perderia sua vida na sociedade, vivendo à sombra de sua debutante. E, quando esta se casasse, Anne se tornaria sua empregada na nova casa. Anne perdeu sua nobreza, deixou de ser senhorita Lady Shirley e agora seria apenas Anne Shirley, uma aia de companhia.

E tudo o que seu pai lhe ensinou, todos os livros que leu, as horas dedicadas às danças, as músicas que cantava até a garganta doer, os idiomas que teve que aprender — tudo parecia em vão, apenas para acabar como dama de companhia. Que vida repugnante! Seu mundo parecia ter um prazo de validade, e agora ela teria que desbravar uma nova realidade, que certamente seria difícil e, provavelmente, triste.

Anne repudiava seus cabelos ruivos, as sardas no rosto e até o fato de ser mulher. Ela desprezava tudo o que a tornava incomum. Odiava o que era único, singular e excepcional, incluindo ela mesma. Mal sabia ela que esse repúdio a levaria a alcançar horizontes que nenhuma mulher jamais havia alcançado.

— Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve. — A voz do Gato de Alice no País das Maravilhas, que Anne tanto imaginava, sussurrou em sua mente. E o felino estava certo; ela não fazia ideia do que fazer, então qualquer coisa serviria.

Anne fechou os olhos, tentando afastar os pensamentos negativos. A vida a havia colocado em uma encruzilhada, e ela precisava tomar uma decisão difícil. Seria mais fácil se entregar ao destino, aceitar seu papel de dama de companhia e desaparecer na sombra daquela jovem rica e mimada. Mas havia uma parte dela que se recusava a desistir. Uma pequena voz interior a incentivava a lutar por seus sonhos, por uma vida mais autêntica.

Com um suspiro profundo, ela se levantou e foi até a janela. A lua iluminava o jardim, criando um cenário mágico. Anne sentiu uma paz momentânea, como se o universo estivesse conspirando para guiá-la. Ela sabia que o caminho seria longo e árduo, mas estava disposta a enfrentá-lo. Afinal, quem disse que uma mulher não pode reescrever sua própria história?

— Tem hora que a gente se cansa de procurar e pensa que é melhor desistir de tudo. — Como é que se faz pra ficar com um sonho? — As frases do livro A Casa da Madrinha ecoavam em sua mente. Queria desistir e virar dama de honra ou ficar e incomodar seu primo distante, que provavelmente traria uma esposa irritante. Nas duas opções, ficaria presa a serviçal, mas só uma ganharia por isso.

— Anne! Anne! Achamos uma carta para a senhorita, é de seu amado pai — disse sua dama de companhia, entrando no quarto. Talvez isso fosse um sinal do destino, seu pai lhe dizendo para ser uma dama de companhia.

GILBERT BLYTHE

Em um lugar um pouco afastado de Anne, vivia o motivo dos suspiros de muitas jovens e a grande decepção da outra parte delas, Gilbert Blythe, o Duque. A maioria dos nobres era velha e tinha uma aparência desagradável aos olhos, mas Vossa Graça não; era esbelto e esculpido por anjos.

Sua beleza transcendia o comum. Seu jeito doce e sua aura clara transpareciam vida, chamando a atenção de todas. Enquanto isso, ele ironizava todas as moças que tentaram se casar com ele; nenhuma estava à sua altura. Ele era um horizonte a ser alcançado e queria uma mulher que fosse desafiadora e instigasse, que não fosse uma boneca da sociedade como as outras. Ele queria uma esposa única, singular e excepcional.

— Eu busco, e a cada passo que dou, me aproximo da fonte do que busco — recitou Gilbert, citando Petrarca.

— Mais próximo da solidão, não há uma moça que não quisesse Vossa Graça e, se me permitir acrescentar o comentário, para garantir o futuro de sua irmã, temo que tenha um objetivo a concluir — disse Sebastian, um criado que possuía a estima do Duque.

— Todos precisamos de um par, porém só os que amam escolhem pelo racional. E eu sou vivo por amor; o destino trará minha amante, minha rainha, a rainha do meu coração — respondeu o Duque, explicando pela milésima vez.

— Vossa Graça, não acha que passou demasiado tempo lendo livros de romance? E, dito isso, reitero que são alucinações; acreditar nisso, meu amo, é com certeza o pior dos devaneios! — falou, preocupado, com seu patrão.

— Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve. Esse verso, Sebastian, diz muita coisa, e uma delas é que, para a maioria dos nobres, qualquer uma serve. E, por isso, escolhem tão apressadamente uma esposa. Eu sei para onde estou indo, e por isso algo monótono, comum e plural não cumpre meus requisitos; não me serve e nem me agrada.

 Estaria indo contra tudo que acredito ao escolher qualquer uma dessas moças, e peço que não fale mais sobre esse assunto! — esbravejou Gilbert, perdendo a paciência.

— E como seria sua esposa ideal? — perguntou o empregado, um pouco receoso.

— Eu gosto de quem ironiza a vida, então provavelmente seria o escárnio em pessoa — disse o nobre, alegremente.

Escárnio e Repúdio - ShirbertOnde histórias criam vida. Descubra agora