O universo numa caixa de papelão

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O universo numa caixa de papelão

Pricila Elspeth

A voz penosa ecoava pelo ambiente e retorna aos ouvidos dos presentes como verdadeiras farpas de fogo. A Sacerdotisa elencava momentos de grandiosidade espiritual e evolução mental da falecida, os amigos e parentes oravam à Deusa em silêncio e desejavam que a anciã encontrasse o melhor caminho para as 'Terras do verão' e que um dia pudesse estar entre todos novamente.

Após o cântico ritual pelos falecidos, a Sacerdotisa chamou a família para que se aproximassem e falassem com a anciã pela última vez. Cibele trajava um vestido longo e preto, Morgana usava uma camiseta vermelha e uma jardineira de denim com um unicórnio bordado no bolso do peitoral. Ambas se aproximaram e Morgana foi colocada sobre uma banqueta para poder alcançar o altar improvisado.

"Ah, mãe! Não posso me queixar por ter nos deixado, mas posso me queixar da falta que fará. Não ouso questionar a Deusa, nem qualquer sabedoria superior, mas tenho corpo, mente e coração fracos, errôneos, completamente humanos e isso me faz desejar que não tivesse ido. O caminho é longo, pode ser difícil, tortuoso e até perturbador, mas lembre-se sempre de nós, de seus amigos e até dos alunos do dojo, todas essas memórias servirão de luz e a guiarão em segurança até seu repouso momentâneo, e saiba que estaremos aqui esperando vê-la novamente, portanto, não demore."

Cibele estendeu a mão e tocou o braço rígido da anciã. Morgana apresentava um semblante alegre e surpreendentemente curioso, ao contrário de sua mãe que se desfazia em lágrimas. A mãe sinalizou para a pequenina para dizer algo à avó.

"Ela vai escutar, mãe?" perguntou a guria olhando para cima, e após a mãe confirmar com um aceno de cabeça, ela virou-se para o corpo da falecida e a encarou por alguns segundos. "Vó... Use protetor na terra do verão senão você pode se queimar." Risos contidos soaram em alguns pontos da sala. "Eu disse que não gostava do Yule porque você tinha que ir embora, mas agora eu gosto, porque sei que você voltará e trazer mais duas vózinhas pra mim." Soluços e ganiços ecoaram pela sala. "Vó... Sei que voltará diferente e eu posso não te conhecer, então facilita, tá?"

Cibele acariciou a cabeça da filha e abaixou-se perto dela para acolhê-la em seus braços num apertado amplexo.

O corpo foi coberto com um lençol preto e transportado para o exterior da propriedade. Estava tudo quieto e úmido como se fosse chover e ainda era inicio da tarde. O vento soprava minúsculas sementes felpudas pelo ar e tingia o ambiente com casquinas leves e amarronzadas arrancadas das árvores ao redor. Cibele só pensava na possibilidade de terem-na cremado no Brasil, mas como a anciã havia deixado expressamente escrito seus desejos, o advogado fez com que fossem cumpridos; e isso fez com que ela e a filha viajassem metade do globo para sepultar Cassandra ao ar livre em sua terra natal; Escócia.

Após o sepultamento, mãe e filha retornavam ao chalé, de mãos dadas e a passos lentos. A menina se desvencilhou da mãe, correu por alguns metros, pegou um punhado de pinhas jovens e completamente sorridente atirou-as na mãe. Cibele assustou-se com a ação, olhou para o rosto angelical da filha, todo vermelho por conta do riso e não conseguiu se conter, sorriu também. Pegou um punhado de folhas e atirou na menina, e logo ambas estavam correndo uma atrás da outra, atirando folhas e pinhas uma na outra e gargalhando estridentemente. Cassandra havia esquecido que havia acabado de sair do funeral da própria mãe, e quando a memória voltou ela interrompeu a brincadeira e justificou precisarem se juntar aos outros, negando completamente sua criança interior.

[...]

Dias depois, elas estavam de volta ao lar. Cibele havia tirado todos os itens da mãe das paredes e quartos e doado o que foi possível, o restante colocou em caixas e guardou no quartinho da bagunça; e daria um destino a tudo aquilo depois. As únicas coisas que permaneceram na casa foram: a faixa de mestra de judô, pendurada na sala, as guirlandas com espirais manufaturadas pela anciã e as plantinhas as quais ela tanto zelava.

Memórias de uma BruxaOnde histórias criam vida. Descubra agora