Estou em um lugar belo, é como um jardim, cheio de borboletas que rodeiam e farfalham feito as folhas que caem no outono, mas, nesse caso, as borboletas nunca caem.
Antes de me dar conta, estou ao lado de Aiyra, sua pele bronzeada cintila na luz solar, ela me conta sobre como sua mãe dizia que seu povoado gostava muito das mulheres, como todas elas eram muito fortes e respeitadas, da mesma forma que os homens eram, mas haviam as diferenças que nunca podiam ser superadas, e era isso que fazia sentido haver dois conceitos diferentes, porque o mundo é um jardim, e uma espécie de flor só pode existir se houver outras espécies.Revivo e experimento novamente as lembranças de quando eu não achava a cultura dos povoados nativos um motivo de vergonha. De quando era legal aprender tapeçaria e brincar com terra pra fazer potes e esculturas que replicavam o estilo Ybyrapirá.
Havia tido um contato maior com a cultura do povoado de Aiyra —o povoado Ybyrapirá— do que com o meu próprio, mesmo que o povoado dela já tivesse sido praticamente extinto pela demora do governo em delimitar o território que pertencia a eles, resultando em uma área oprimida pelos madeireiros, que acabou se tornando tão pequena que foi reduzida a cinzas facilmente em uma das queimadas.
As lembranças das tardes dolorosas de fome sendo anestesiadas pela fotossíntese e pela companhia uma da outra percorria pelo meu coração.
Seus olhos se espremiam por conta do sorriso, revelando sua imensa felicidade, quando me dei por conta, estava nua, e ela também.
Mas não era uma nudez vergonhosa ou voluptuosa, era uma nudez natural, um estado natural que aparentava ser meu e dela, as borboletas pousavam sobre ela, preenchendo o ambiente pelos sons do bater de asas das borboletas, voavam até ela, e até mim também.
Até que, notei a silhueta de um estranho objeto ao fundo, desviei minha atenção de Aiyra prevenente, notando o objeto estranho.
Ali estava o pote.
Atrás dela , no horizonte distante, estava o pote de sementes escarlate.
O bater de asas das borboletas se tornava um zumbido irritante, como se as criaturas estivessem de alguma gritando e esperniando com suas vozes fracas e impotentes.
Mas quando voltei minha atenção a ela, já não havia mais Aiyra, nem jardim.
Haviam asas de borboletas destroçadas no chão, o céu estava escuro, tudo ao meu redor era um imenso breu, ouvi um rangido e os estranhos sons de mastigação, e quando meus olhos finalmente se ajustaram, eu vi a visão do inferno.
Aiyra presa nas teias de uma enorme aranha, sendo devorada viva, sua barriga estufada pelo bebê que carregava, até que a barriga se descascou feito uma fruta, revelando uma criança metade aranha devorando as entranhas de sua mãe.
“Anahí...”
“Anahí.”
“ANAHÍ!”
Acordei suada em cima da cama, completamente encharcada de suor, quando percebi, havia perdido a hora para ir pra escola, já eram por volta das 9 horas da manhã e minha mãe passava a mão em minha testa.Eu ainda estou na linha fina e frágil entre a realidade e a fantasia, o que resulta em uma sensação horrível de desconforto ao não saber diferenciar minha mãe de uma aranha ficticia, o que deixa as coisas ainda mais complicadas é a minha hipermetropia, sem os óculos enxergo apenas silhuetas que tento interpretar, minha mente meio lúcida meio alucinada enxerga tudo menos minha mãe na silhueta desfocada.
—Mãe...?
—Shh... Está tudo bem, você deve estar doente, estava suando muito quando cheguei, então não te chamei pra ir pra escola. Você deveria descansar, eu vou estar aqui hoje. Não se mexe muito, tá?
Aceno com a cabeça em concordância, é uma das poucas vezes em que me sinto próxima da minha mãe... É estranho. É como se ela... Sempre existisse na minha vida, mas não perto o suficiente pra que demonstrações de afeto íntimas fossem normais pra mim... A sempre existência me faz pensar em uma coisa: aquele pote sempre esteve com a gente, e eu nunca percebi.
—Você tá com fotodermatose? Ficou demais embaixo do sol? Você tá quente, quer um chá de guaco⁶?
Ela coloca a mão em minha testa e flores, me perguntando se estou com fotodermatose Floralis, mas meu estado febril não vem do sol, vem de outras brasas. Faço que não com a cabeça, não quero tomar o chá das ervas que ela aprendeu a usar, não quero nada disso agora, ela nunca me pergunta se eu quero algo normal pra me sentir melhor, nunca é “quer uma dipirona? Um ibuprofeno? Quer que eu vá na farmácia?”, não.
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Raízes da Inveja (Demo oficial)
Science FictionEm um mundo onde os humanos e as plantas são um só, Anahí, uma garota originária do povoado Tataryê, enfrenta uma sociedade meritocrática identitarista que resume as pessoas simplesmente às suas flores e plantas. Como forma de rebeldia e em uma tent...