Estamos na aula de artes, entreguei minha pesquisa ao senhor Takumi, me sinto nervosa, a minha vaga no projeto já está garantida, mas, se a Aiko passar, o que eu tenho certeza de que vai, o que eu vou fazer? Eu vou perder tudo, ninguém nem vai mais lembrar que eu existo.
Nossa atividade de hoje é fazer uma releitura do deus Apollo, ele disse que vai nos dar duas aulas pra completar essa atividade.
Observo a tela à minha frente, analisando o fruto do professor minuciosamente, analiso como ele pintou Apollo, aparentemente ele simplesmente usou a escultura dele como referência, a pose é a mesma, mas transformou a escultura em uma pessoa, com traços vivos, ele pintou a obra com tintas a óleo, já os lírios de Apollo parecem ter sido pintados com aquarela.
A única pessoa em quem consigo pensar que poderia representar grandeza, pureza, soberania e sendo o Sol em si é a própria Aiko, me pergunto quem seria o Apollo de Aiko, se ela desenharia ela mesma ou outra pessoa, ou se sequer desenharia outra pessoa, provavelmente faria o deus Apollo em si, direta e eficiente... Me pergunto o que teria valor maior, um Apollo do olimpo ou um Apollo interpretativo.
Começo a traçar na folha os desenhos que formarão Apollo, ou pelo menos a minha versão feminina de Apollo, provavelmente vou desenhar como se o sol tivesse perdido o brilho e borrar o rosto dessa versão de Apollo, assim vai ser difícil reconhecer quem é, era essa a realidade que eu queria. Queria que fosse difícil reconhecer quem é a Aiko, difícil saber que ela é assim, queria que seu brilho escurecesse, assim eu não me sentiria tão mal.
Sinto a folha da papel grudando levemente em minha mão, sinal de que estou começando a suar, me recusei a ficar em casa mesmo aparentemente doente, sinto como se meu cérebro e minhas flores estivessem cozidos, mas eu não iria ficar com a minha mãe depois do que aconteceu ontem. Prefiro terminar de cozinhar meu cérebro aqui do que carbonizar ele em casa.
Meu cabelo bagunçado e meus óculos levemente tortos, assim como minha mesa, lotada de materiais desorganizados, borrachas e lápis amontoados ao redor da folha de papel, derrubando várias coisas vezes que me fazem precisar abaixar pra pegar.
A silhueta de Apollo vai tomando forma, até que noto uma agitação em nosso sistema solar, pessoas começam a se aglomerar em torno de Aiko, interações entre Aiko e seu séquito, formado por todos, já é algo de praxe. Mas dessa vez, ouço o som de risadas, o som das gargalhadas estridentes me tiram do meu pequeno mundinho, me fazendo olhar para trás, vendo Kazuki rindo, uma coisa que dificilmente acontece, é uma cena muito bonita... Vejo Kiara, Isabella, Caio, Kyoko e outros alunos rindo de uma forma extremamente genuína.
Pego meu caderno e vou em direção às outras pessoas que orbitam Aiko, passando a me juntar a sua órbita.
O que eu vi foi a decepção mais deliciosa que já havia sentido, mas também a maior certeza que já tive: Aiko era hipócrita.
Foi a maior surpresa que já tive em toda a minha vida, a mais inesperada, ainda mais levando em consideração seu comportamento.
Aiko estava levemente corada, rindo, e seu desenho não era nada mais nada menos do que um simples boneco de palito, que demonstrava claramente que ela tinha inclusive problemas com a coordenação motora, afinal: as pernas e braços estavam tremidas, o círculo que deveria ser a cabeça parecia mais com um quadrado ou um triângulo do que com um círculo, era um simples boneco de palitos. Não pude deixar de deixar um dos mais genuínos sorrisos escaparem de meus lados, um sorriso trêmulo, malicioso e contido, ela não é perfeita.
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Raízes da Inveja (Demo oficial)
Ciencia FicciónEm um mundo onde os humanos e as plantas são um só, Anahí, uma garota originária do povoado Tataryê, enfrenta uma sociedade meritocrática identitarista que resume as pessoas simplesmente às suas flores e plantas. Como forma de rebeldia e em uma tent...