10❀ A obliteração das Raízes

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O soar do meu despertador me acorda como de praxe, me deixando levemente alerta, me reviro na cama enquanto o despertador profere, ou melhor, grita, seus bips irritantes

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O soar do meu despertador me acorda como de praxe, me deixando levemente alerta, me reviro na cama enquanto o despertador profere, ou melhor, grita, seus bips irritantes.
Cubro minha cabeça com o travesseiro, o que me faz sentir uma dor profunda em meu couro cabeludo e em minha cabeça, retiro o travesseiro imediatamente de minha cabeça, não entendo porque minha cabeça dói.
Ao me levantar, vou direto para o banheiro para escovar os dentes, planejando me arrumar direito pra ir a escola.
Vou em direção ao banheiro em passos lentos e desnorteados, ao entrar e me virar diretamente ao espelho, não reconheço a silhueta no espelho, até que lembro do que fiz ontem e entendo o porquê de minha cabeça estar doendo tanto.
Suspiro, sentindo como se todo o meu corpo estivesse sendo punido com uma dor insuportável, lavo minha testa com água, tentando me sentir melhor.
Retiro as gases cobertas de sangue de minhas feridas recém abertas, abro a gaveta abaixo da pia procurando por algodões, encontro novamente a caixa de madeira estranha, decido abri-la procurando por algodões.
Quando a abro, não encontro nada além de cheiro de ipê amarelo, um cheiro forte e enjoativo que me faz cobrir meu nariz às pressas, o cheiro me fez ficar estressada ao invés de em paz, tem cheiro de stress, não de paz.
Deve ser aqui que minha mãe guarda o incenso dela pra ter um cheiro tão forte de ipê amarelo, está vazia, acho que ela vai comprar mais esse mês.
Fecho a caixa imediatamente, me segurando para não vomitar. O cheiro é enjoativo demais.
Olho no fundo da gaveta e acabo encontrando uma caixa de algodão em rolo, retiro a caixa e começo a colocar os algodões em minhas feridas, consigo disfarçá-las com as mechas do meu cabelo, cobrindo a ferida e o pequeno “tronco” cortado.
Começo a pentear unicamente minha e algumas mechas do meu cabelo, não vou poder de forma alguma pentear perfeitamente por conta das feridas.
Começo a escovar meus dentes, silenciosamente desprezando a escova que minha mãe insiste em usar: uma escova feita de bambu.
Após concluir totalmente qualquer necessidade matinal, vou vestir meu uniforme e arrumar a minha bolsa novamente.
Penso em como a última vez que vi minha mãe já foi há uns dias, pedi a ela pra assinar a autorização do passeio e do projeto naquele dia e ela aceitou, naquele dia, entreguei também o boletim que foi entregue a mim pois ela não foi na reunião, também entreguei as provas, o que fez ela me mandar ir pro quarto antes que perdesse a paciência.
Faz tempo que não converso adequadamente com ela, desde que ela ficou irritada e agressiva.
Mas isso são águas passadas, não vou mais deixar ela irritada porque vou ignorar esse pote a partir de agora, deve ter sido alguma herança do povoado e é claro que ela não iria querer que eu mexesse.
Subitamente, recebo uma mensagem em meu celular, é minha mãe, a mensagem diz que a patroa dela antecipou o salário dela, isso é estranho, isso acontece algumas vezes sem motivo algum, antecipar 3 dias antes é estranho. Isso significa que minha mãe provavelmente vai aparecer em casa mais cedo também.
Ela me mandou um comprovante de Pix feito pra conta poupança aberta em meu nome, ela depositou 200 reais da minha mesada, em pensar que, há alguns anos, eu não sonhava nem em receber 10 reais, quem dera 200.
Meu astral sobe levemente, mesmo que eu ainda esteja atordoada pela dor crescente em meus galhos.
Suspiro, vou me arrumar, decido vestir o casaco de sempre juntamente ao meu uniforme, mas como não estou afim de explicar o que aconteceu com meu cabelo e galhos, ainda mais pois seria muito estranho eu ter literalmente liberado néctar ontem e aparecer sem flores e sem mais da metade do cabelo hoje.
Pego alguns lápis e coloco dentro do protetor de galhos, simulando como se meus galhos estivessem ainda dentro do capuz, depois, o coloco o sobre minha cabeça, simulando perfeitamente o volume de galhos, galhos esses que já não tenho mais.

As aulas foram exatamente a mesma coisa, a exceção de que agora eu estou até que entendendo um pouco mais a matéria, teorema de Pitágoras é fácil, as aulas de ciências estão sendo sobre anatomia, faço retratos, desenho também as flores das outras pessoas, então é claro que essa aula seria interessante pra mim. Português continua chato, artes está mais ou menos, estamos trabalhando com pontilhismo agora, e o projeto não têm ido muito bem, por sinal, é amanhã.
Subo as escadas até sair da escola, hoje não irei almoçar já que vamos ter comida em casa.
Consegui esconder a ausência das minhas flores a aula toda, mas não sei por quanto tempo vou conseguir esconder dos alunos, também estou com medo de como minha mãe vai reagir, não era pra ela voltar agora. Mas não acho que ela vá reagir em relação a isso, nem tem nada de tão inadmissível no que fiz.

Minha mãe deve estar me esperando, uma vez na vida ela deve estar me esperando em casa.
Retiro minhas chaves e entro em minha residência, sentindo meu nariz congestionado por conta de ter chorado muito. Ao entrar, removo meus sapatos na entrada da casa como de praxe, ficando apenas de meias e me preparando para subir para meu quarto, retiro o capuz, sabendo que teria que mostrar pra minha mãe uma hora ou outra.
—Mãe... Voltei...
Digo em uma voz fraca, mas em tom alto o suficiente para ser ouvido.
Minha mãe vem me receber, as flores que agora reconheço pelo espécie murchas e entrelaçadas em seus cabelos, tento sorrir pra ela, que se aproxima lentamente de mim, seu olhar fixo em meu rosto, ela vem em minha direção sem dizer uma só palavra.
—Oi mãe, como foi no trabalho?
Tento manter o sorriso, sem resposta, seu olhar vazio permanece fixado em mim, meu sorriso começa a murchar e uma sensação estranha preenche meu âmago.
—...M-Mãe?
Suas mãos tremulam e tocam meus cabelos cortados, depois a base dos galhos, mas quando meu cérebro consegue finalmente traduzir a sensação estranha, já é tarde demais.
Sua mão desfere um tapa firme em meu rosto, a dor se espalha pelo meu corpo como se fosse um câncer, juntamente a um forte zumbido em meu ouvido, acabo caindo de joelhos no chão, juntamente aos meus óculos que voam pra longe por conta do impacto, o medo envolve meu corpo como cipós espinhosos me prendendo.
Ela me agarra pelo cabelo, me puxando pra cima e arrancando alguns fios, tenho que me segurar pra não gritar, as lágrimas de dor preenchem meus olhos.
—MAS NÃO É POSSÍVEL, ANAHÍ. EU DEVO TER CRIADO UMA BURRA PRA TER FEITO ISSO, VOCÊ NÃO APRENDE NADA, QUE MERDA PASSOU PELA SUA CABEÇA QUANDO DECIDIU CORTAR AS FLORES?!
Ela me chacoalha, as lágrimas começam a germinar em meus olhos, a dor dos meus galhos recém cortados se funde com a dor de meus cabelos sendo puxados e com a dor causada pelo tapa.
—QUE IDEIA DE MERDA, MENINA INFELIZ! NÃO SEI PORQUE EU TINHA QUE TER UMA FILHA IGUAL A VOCÊ!
Vejo a expressão de fúria em seus olhos, ela me joga no chão, nesse momento consigo agarrar meus óculos, me levantar e correr até o quarto, tropeçando e escorregando por estar de meias calça, corro em direção ao meu quarto enquanto ela corre atrás de mim, fecho a porta com força e a tranco imediatamente, abafando as pancadas que ela desfere na porta e os gritos.
Meu corpo trêmulo, me sento ao lado da cama, me sentindo de maneira semelhante a forma que senti no dia em que Aiyra foi ceifada, meus instintos gritam pra que eu vá para debaixo da cama, mas sei que enquanto a porta estiver trancada, nada vai acontecer.
Coloco minha mão sobre minha bochecha recém impactada, sentindo o relevo que causa ardência em meu rosto banhado em lágrimas, o tapa formou relevos, sinto algo molhado além das minhas lágrimas, está saindo do meu ouvido.
Minha respiração pesa, coloco a mão na fonte do líquido e percebo que meu ouvido está sangrando, o medo do que acabei de perceber preenche meu corpo.
Minha mãe continua batendo na porta do quarto, proferindo xingamentos e me falando pra abrir a porta, aproveito a situação pra fazer um teste, tampo meu ouvido livre de sangramentos com a mão e percebo que a única coisa que escuto pelo ouvido que sangrou por um tempo é um forte zumbido.
O medo se amplifica, não é possível que eu tenha ficado surda de um ouvido por conta de um tapa.
Para meu alívio, o zumbido começa a cessar e eu consigo voltar a ouvir lentamente, ouvir é bom, o problema é que a única coisa que tem pra ouvir é minha mãe gritando e batendo na porta.
Encolhida no canto do quarto, descanso minha cabeça em meus joelhos, abraçando meu próprio corpo e esperando a crise da minha mãe passar.
Geralmente ela se porta mais ou menos assim, fica estressada, principalmente quando é o final do mês e quando faltam alguns dias pra receber o pagamento, mesmo que às vezes o pagamento venha adiantado. Me pergunto se a patroa também não suporta ela irritada e por isso acaba antecipando o pagamento.
Acho que todo mundo fica estressado no final do mês, não têm dinheiro pra nada e às vezes já não tem comida, entretanto, dessa vez, é difícil justificar as ações da minha mãe com “falta de comida”.
Eu não sei nada sobre a mulher que ainda não desistiu de arrombar a porta do quarto, ela também não me deixa chegar perto de quem ela é ou foi, a única coisa que ela me diz às vezes é pra estudar bastante pra conseguir um bom emprego já que ela não conseguiu.
Ela me diz pra não ser igual a ela e pra fazer diferente, ela me dizia que meu futuro seria muito bonito quando eu era mais nova, acho que a maior decepção foi dela ao perceber que não seria.
Minha mãe também não gosta de quem eu sou, o sentimento é mútuo, também não gosto dessa pessoa... Me pergunto se o professor ainda gosta de mim, me pergunto se ele ainda tem apreço por mim da mesma forma que Masato tem pela Aiko, ele tem andado distante. Me pergunto o que ele deve ter pensado quando o néctar vazou de minhas flores.
A perturbação para, me deixando alerta, escuto passos e o abrir de gavetas no quarto ao lado, quarto esse que seria da minha mãe, mesmo ficando grande parte do dia vazio. Ela parece estar procurando por alguma coisa, quando o som da gaveta se fechando ecoa, entendo que ela achou o que estava procurando.
Os passos voltam a ocorrer novamente e sinto um frio na barriga quando os passos chegam perto da porta do meu quarto novamente, mas me sinto aliviada novamente quando os passos continuam seu caminho.
Ouço o som de chaves. Ela vai sair.
Mas agora? Pra onde ela sequer iria querer ir agora? Eu não poderia perguntar pra onde ela vai, talvez vá ao mercado, a comida de casa já praticamente acabou, essa é a explicação mais plausível.
Após alguns minutos da porta ter sido trancada novamente, levanto e abro a porta sorrateiramente, conferindo os arredores pra ter certeza de que ela já foi.
Saio do quarto ao ter certeza, indo em direção ao banheiro, encontrando mais uma vez um pouco de sangue que já secou em minha orelha e o relevo causado pelo impacto do tapa.
Não posso ir pra escola assim, não com o rosto desse jeito, provavelmente vão achar que estou sofrendo abuso doméstico e que cortaram minhas flores como castigo, isso é comum entre os casos de abuso físico infantil, principalmente no passado, o passado sempre foi horrível, em todos os aspectos.
Pego um pedaço de papel higiênico e o molho com água, depois passo na pequena quantidade de sangue, limpando meu ouvido e orelha.
Coloco meus óculos novamente, a armação está levemente torta e a lente direita está com um trinco leve, provavelmente teremos que comprar outra lente e outra armação.
A armação não vai ser problema já que tem um local na cidade que dá a armação de graça, já a lente deve ficar em torno de 250 reais, o que seria um enorme problema antigamente, afinal, no passado eu nem tinha óculos, tirava notas baixas porque não podia enxergar a lousa e a professora me obrigava a sentar na frente da sala por ser ordem de chamada.
Mas agora as coisas são diferentes.
Coloco meu capuz, confiro as chaves em meus bolsos, vou ter que comprar maquiagem pra esconder isso.

Passo ao lado do comércio já bem acordado, andando pela calçada e vendo as barraquinhas reunidas na extensão da rua florida e das lanternas japonesas apagadas, são em torno de uma da tarde agora.
Pessoas se reúnem em barraquinhas de pastel, outras em barraquinhas de takoyaki, algumas apreciam o guioza, há praticamente um almoço completo em qualquer lugar que você pisar aqui.
Passo pela extensão da rua, procurando uma perfumaria, enquanto caminho, posso ver as barracas de artesanato, muitas vendendo bonsais juntamente a alguns saquinhos de sementes de plantas, é recomendável comprar sementes de plantas diretamente na farmácia por ser mais higiênico caso você vá ingeri-las, mas é claro que insistiriam em comprar as sementes fora da farmácia, até em barraquinhas de rua.
Após caminhar bastante, passo pela papelaria da tia Ayu, acabo parando por um segundo para observar a papelaria, eu provavelmente torraria meu dinheiro aqui sem nem hesitar, ainda mais quando descobri sobre aquela borracha molinha... Mas nesse momento, preciso de maquiagem, com certeza vai sobrar dinheiro pra comprar os materiais.
Continuo meu caminho, ouvindo a movimentação da rua ao meu lado e passando por algumas pessoas que caminham na rua, ando cabisbaixa, com medo de que alguém veja a ausência de minhas flores e também as marcas do tapa que levei.
Acabo encontrando a perfumaria, vi essa perfumaria uma única vez, o nome dela é Loretta. Entro no estabelecimento, tentando parecer menos tímida ou menos suspeita, suspiro, vou precisar de base.
Pego uma pequena cestinha plástica de tom rosado e começo a procurar pelo que preciso comprar aqui, passando por vários pincéis, só estou familiarizada com pincéis quando preciso pintar, mas já que Takumi me chamou de copiadora, e ele é meu professor, talvez eu nunca vá ser uma artista de verdade.
Encontro a seção de bases, quando vou pegar uma delas, me deparo com um desenho em tamanho real da Bella, feito em MDF, vou até ele, e logo encontro uma seção de produtos da própria Bella, sua primeira coleção de maquiagem.
O interesse acaba me seduzindo, vou até a seção, encontrando uma coleção de bases dela ao lado do espelho, a mais nova coleção possui embalagens de padrões de Sakura, o que me traz horríveis lembranças, e é estranho. A maioria dos produtos de Bella, inclusive seus vestidos, são com padrões de rosa ou dos polinizadores de suas flores. Essa é a segunda coleção de maquiagem dela, a primeira foi lançada no ano passado.
Pego um tom que acho ser o meu das bases, mas acabo me lembrando de como fiquei bonita com os tons claros e como isso me fez me sentir melhor. Devolvo a base e pego um tom mais claro aleatório.
A base de Bella é mais cara, mas não me importo.
Na coleção, encontro todos os tipos de maquiagem, desde glitter para flores, esfoliante de pétalas, batom sombra para os olhos, pigmentação para flores, cílios postiços, unhas postiças, esmaltes, até me deparar com flores postiças, geralmente usada por pessoas que estão com câncer pois as flores começam a se despedaçar.
Toco os pacotes das flores, encontro rosas parecidas com as de Bella, na embalagem diz que são rosas sintéticas artificiais inspiradas nas flores de Bella, perfumadas com aromatizante inspirado nas flores de Bella, o slogan diz: “Perdendo sua identidade? Eu te empresto a minha, querida”. Meus olhos brilham, isso evitaria as pessoas na rua me olhando feio por não ter flores.
Coloco as flores na cesta.
Pego unhas postiças, as minhas são totalmente roídas, pego unhas vermelhas com padrões de rosas em preto.
Não tenho cílios, decido comprar cílios postiços também.
Pego um batom de tom vermelho vibrante com cheiro de morango e coloco na cesta, a conta já deve estar dando 100 reais, só as flores são 50 reais, os produtos de Bella são caros, mas não me importo com isso.
Saio da seção e decido comprar esponjas...

Quando saio da loja, já são por volta de uma hora e vinte da tarde, é provável que minha mãe já esteja em casa.
Suspiro, não quero ir pra casa agora, da mesma forma que não quero ir para o projeto.
Suspiro e continuo andando, vou ter que voltar pra casa de qualquer jeito, sobraram 95 reais da minha mesada, levo as sacolas dos produtos comigo, aproveito pra passar na papelaria, vou tentar comprar alguma das coisas que o professor pediu.
Entro na papelaria organizada minuciosamente, vou até a seção de folhas de papel e cadernos em busca das folhas de papel Canson, entretanto, o papel está muito caro, desde as manifestações que estão acontecendo novamente pelas pessoas que acreditam que as árvores e plantas têm os mesmos direitos que as pessoas, o papel tem ficado cada vez mais caro, principalmente o Canson de gramatura correta.
20 folhas dele estão custando 55,99 reais na papelaria, caro demais, se eu comprar o papel, não vou poder comprar mais nada. Decido ir comprar o máximo de coisas possível com o restante do dinheiro, o papel está caro demais.
Me dirijo até a seção de borrachas, vasculho um pouco até encontrar a borracha limpa tipo, pego a embalagem quadrada que envolve uma das borrachas, essa tendo um tom rosa choque.
Lembro de cabeça toda a lista que me foi dada, preciso de lápis de tipos diferentes, encontro uma caixa com lápis de todos os tipos, indo de 8H até 8B, a caixa está saindo por 30 reais, também pelo fato dos lápis serem “feitos de árvore”, a pego e sigo caminho, encontrando uma lapiseira técnica.
Até um tempo atrás, uma dessas custaria em torno de sessenta reais, mas, como a maioria das pessoas está realmente se juntando a oposição pelos direitos das árvores, os preços de tudo composto por metal acabou caindo muito, lápis infinitos, canetas de todos os tipos, até mesmo as caras lapiseiras técnicas caíram de preço.
Está custando 15 reais, as lapiseiras mais simples estão custando até mesmo 2,99, enquanto os lápis estão custando mais de 5 reais um simples! É simplesmente inacreditável, da mesma forma que ainda não acredito na reação estranha que minha mãe teve.
Pego a lapiseira, segurando todos os materiais em minhas mãos, tenho grafite em casa então não preciso comprar mais.
Faço as contas, talvez seja possível comprar o giz oleoso se eu pegar um de 24 cores, da última vez que o vi, estava custando 24,99, minha lembrança é confirmada quando o encontro, faço um check em parte dos itens mentalmente, lapiseira, lápis, borracha, giz oleoso.
Não vai dar pra pegar tudo, decido pegar os esfuminhos, já que no caso do lápis borracha, assim como os outros lápis, ele está custando mais do que custava antes, está custando 10 reais,
Pego esfuminhos de tamanho variado, apenas 3, cada um está custando 5 reais por serem feitos de papel.
Vou direto ao caixa, dando um sorriso tímido ao marido da dona da loja que logo começa a registrar todos os produtos.
—Borracha limpa tipo? Você vai adorar, é macia, do jeito que você gosta. Inclusive, bagunçou as borrachas bastante hoje, fia?
Acabo dando algumas risadas.
—Não, tio...
Ele faz uma expressão exagerada de surpresa.
—O quê? Você deve estar doente! Não pode estar bem!
Sorrio de leve, ele não está errado.

Agora voltando para casa, minha mãe já deve estar lá, já deve ter voltado do mercado, é impossível não ter voltado. A fome floresce em meu estômago vazio, fazendo meu estômago roncar.
Ando com as sacolas até em casa, sentindo calafrios pelo medo do inevitável: encontrar minha mãe em casa.
Ando pelas calçadas, sentindo o cheiro do pastel das barraquinhas servir de adubo para minha fome, suspiro, tentando ignorar o cheiro do comércio até chegar em casa.
Paro por algum tempo, contemplando a casa na qual nunca imaginei morar, contemplando e refletindo sobre o quão grata eu deveria ser por essa casa, essa casa sem lar, onde o amor não floresce e não existe jardim, só duas flores solitárias.
Minhas mãos suadas pegam as chaves e inserem na fechadura, girando o mecanismo lentamente enquanto meus batimentos cardíacos me fazem sentir como se eu tivesse acabado de correr uma maratona.
Retiro os sapatos antes mesmo de entrar, tentando inutilmente atrasar algo inevitável, o silêncio é alto demais.
Minha respiração oscila, me esgueiro até a sala de estar, minha mãe não está aqui.
Vou até a cozinha, aqui também não, não tem nenhuma sacola em cima da mesa de jantar.
Vou até seu quarto, também não está aqui.
Estranho... Vou até o banheiro, não tem ninguém em casa.
O mercado é aqui do lado, já era pra ela estar aqui, mas não está.
Só se ela não tiver ido ao mercado, mas isso seria estranho, precisamos de comida, onde mais ela teria ido após receber seu salário?
É um alívio que não esperava, mas sei que ela pode chegar a qualquer momento, então corro para o meu quarto, me trancando imediatamente juntamente às sacolas, suspiro, estou a salvo.
Me sento em minha cadeira e coloco as sacolas sobre a mesa, amanhã tem projeto, então imediatamente coloco os materiais que comprei dentro da minha mochila.
Depois, retiro todos os produtos de beleza e os coloco em minha gaveta, pegando também as revistas que mantive para aprender a desenhar, irei fazer algumas revisões para amanhã.
Me sento na cadeira, pegando um lápis de qualidade questionável, é um dos mais básicos, de tipo HB. Abro a primeira revista em exercícios de como desenhar olhos, posicionando uma folha sulfite, das mais baratas, ao lado da revista, começando a aprender sobre como usar uma forma de T pode funcionar para mapear as expressões e características de um rosto.
Continuo com isso por algumas horas, aprendendo sobre como mapear um rosto, como construir com formas geométricas e como manter a consistência mas sem desenhar as mesmas coisas de novo e de novo.

O tempo passou e eu nem percebi, quando me dou por conta, são 20pm, hora de tomar banho e começar a me arrumar pra ir pra cama. Minha mãe não chegou, ela não pode ter ido ao mercado...
Onde está minha mãe?

A maquiagem cobre meu rosto em uma grande sobreposição de camadas finas, cobrindo o tapa desferido em minha bochecha e também clareando minha pele, penteio o cabelo, não fazendo tanto esforço para esconder os galhos recém cortados, abro o pacote de rosas postiças, removendo o adesivo feito para se grudar em qualquer lugar de cada uma das rosas, posiciono cada uma envolta da minha cabeça, escondendo os galhos cortados.
Coloco cílios postiços, agora meus olhos também possuem cílios, assim como todas as outras garotas.
Percorro meus lábios com o batom vermelho carmesim, cobrindo ajeito meus cabelos, gosto da imagem que encontro no espelho.
Abro a embalagem de unhas postiças e as coloco em meus brotos de unhas, minhas mãos parecem maduras.
Ajeito meu uniforme e visto um casaco preto, um casaco que nunca tinha ficado muito bom em mim, mas que agora, ficou lindo em mim. Escondo meus braços, passo um pouco de base em minhas mãos e também em meu pescoço, as únicas partes do meu corpo que estão expostas.
Minha mãe não chegou, deve ter voltado pro trabalho, talvez... Não sei bem.
Deixo minha casa, partindo para mais um dia de estudos.

Me sento na mesma carteira de sempre, não estou me escondendo dentro do meu capuz, algumas pessoas me encararam quando eu estava dentro do ônibus, mas não de um jeito ruim.
Kazuki entra na sala, notando uma presença nova, ou talvez renovada, percebo em seu rosto que claramente não me reconheceu, o que me enche de excitação. Como representante de turma, é óbvio que o primeiro impulso dele seria ir averiguar quando há algo desconhecido.
—Oi, você é aluna nova, né? Prazer, eu me chamo Kazuki, sou o representante de turma. Como se chama?
Abro a boca para responder, minha voz sai tímida.
—Ah, oi... Kazuki... Meu nome é Ana...—
Anahí...? Não... Ele nem me reconheceu, talvez uma mentira não faça mal, se as pessoas forem me notar assim, eu prefiro ser outra pessoa.
—...Bella... Anabella, meu nome é Anabella.
Digo a primeira coisa que veio em minha mente, como se quisesse me fazer acreditar que aquele era meu nome.
—É um prazer te conhecer, Anabella.
Alguns alunos começam a me perguntar a mesma coisa, me rodeando aos poucos.
—De qual escola você veio?
Kazuki pergunta a mim, acabo dizendo o nome da escola na qual realmente estudei antes daqui.
—Eu vim do Professor das oliveiras...
Seu olhar é convidativo, como se me convidasse a fazer parte de algo que nunca realmente fiz parte, agora o jardim está em harmonia, como se todas as plantas fossem da mesma família, como se eu pudesse ser mais parte da turma como desconhecida do que conhecida.
—Entendi, tem uma aluna aqui que veio dessa escola há uns anos, ela até que parece com você, mas...
Mas...? O que ele diria sobre mim quando não estou? Meus olhos brilham um pouco.
—Ela é preta.
Uma garota interrompe, é Isabella, minha expressão murcha.
Kiara dá um beliscão em seu braço.
—Ela é indígena, isso sim.
—Ai! Tá bom, é indígena, mas ela não gosta que chamem ela assim!
—Ela é bonita também, mas você é mais.
Kazuki diz baixinho a última parte, meu rosto fica quente, confusa se deveria gostar disso ou não, ele acha que sou outra pessoa, mas na verdade sou eu, ele acha a outra eu bonita, mas acha essa pessoa aqui mais, só que essa pessoa sou eu também, me sinto sobrecarregada com uma confusão que floresce em minha mente, mas logo o coração faz essa confusão se calar.
—É né? As suas rosas são muito bonitas, as flores da Anahí mal dá pra saber quais são.
—É o ipê amarelo, sua tonta.
Acabo rindo um pouco, rindo de duas pessoas que me fazem sentir muita insatisfação constantemente: Isabella e Kiara.
Logo, uma menina de cabelos encaracolados e bochechas levemente gordinhas com suas orquídeas se dirige a mim sorrindo, rapidamente a reconheço: É Maíra, ela voltou.
Tento me conter, ninguém sabe que sou eu, tento impedir as perguntas de germinar e chegar até a superfície, entretanto não consigo me conter, me levanto rapidamente, agarrando suas mãos, ela me olha surpresa, os lábios carnudos e a pele brilhante formando uma expressão surpresa.
—Maíra?? Você voltou?? Que saudades! O que aconteceu com você?
Os alunos se fitam confusos.
—Quê? Saudades? Como assim? Como você sabe que ela não estava vindo pra escola há uns meses?
Nossas dúvidas e reencontros são interrompidas pela entrada de professora Fumiko, carregando a chamada e sua bolsa com seus materiais, ela comanda para que todos se sentem e logo começa a fazer a chamada.
—Número 1, Aiko Sakurai.
—Presente...
—Número 2, Anahí Anhanguera.
—Faltou!
Diz Kiara, mas logo acabo intervindo.
—P-Presente...
Todos olham pra mim, estupefatos.
—Anahí????
Dou uma risadinha nervosa e tento disfarçar.
—S... Surpresa...

—Nossa, você está muito diferente! Ficou bem bonita até, nunca pensei que fosse ver você assim...
Ela me dá um sorriso leve.
—É, eu sei... Agora me fala, o que aconteceu com você? Você sumiu por tanto tempo, eu senti sua falta!
Ela dá alguns risos leves, senti saudades dessa risada, Kazuki se senta ao nosso lado.
—Verdade, você nos deve explicações, nem nossas mensagens você respondia.
Diz ele com a boca cheia, sua mania de falar de boca cheia e abstenção de boas maneiras desabrochando, ele cutuca o braço de Maísa com o cotovelo.
—Anda, explica aí a boa. Ou a ruim, eu acho.
Nunca vi uma pessoa tão inteligentemente idiota quando ele, na verdade, vi sim. Kazuki ocupa o segundo lugar, já Masato ocupa o primeiro.
—Ah... É difícil de explicar, eu estive dançando, sabe?
—Você sempre tá dançando.
Eu e Kazuki falamos em uníssono, ele me encara, dou um sorriso trêmulo, mas esse sorriso não é exatamente recíproco, ele me olha com um olhar cético e distante, sinto uma sensação de tristeza, uma distância que só é disfarçada pelo bálsamo passado pela voz da garota recém redescoberta.
—Não, quero dizer, de verdade mesmo... Eu treinei bastante depois da Aiko.
Eu sabia. A culpa pro sumiço da minha amiga só podia ser da Aiko, deve ter feito a Maíra se sentir mal também, Maíra tem notas medianas, nada de se orgulhar, as únicas coisas que a impedem de se dissolver na multidão são suas orquídeas dança.
Entretanto, o desfecho que recebo não é exatamente a que esperava.
—Quando ela me corrigiu aquele dia e me mostrou como se realmente fazia, eu me senti inspirada! Ela me mostrou quem eu podia ser, eu nunca achei que alguém soubesse dançar daquela forma, claro, já vi em vídeos, mas nunca assim, tipo, na minha frente, cara...
Seus olhos brilham, e não é por conta das lágrimas de frustração que eu esperava ver.
—Tá, mas isso não explica seu atestado de 2 meses.
Kazuki intervém.
—É que quando eu vi quem ela era, eu soube quem eu podia ser. Eu treinei muito muito, só que fiquei embaixo do sol treinando porque eu dançava no quintal, eu comecei a estudar a dança mesmo, levei tão a sério que fiquei com fotodermatose... Não bebi água, também não comi direito, eu só queria me tornar a minha melhor versão.
—E eu consegui. Eu fui até um concurso, mesmo com as flores todas queimadas por ficar muito tempo no sol... Eu acabei tentando um passo que ainda não sabia e acabei quebrando o tornozelo.
—Você é sinceramente a pessoa mais sem noção que já conheci, cara, fraturar o tornozelo ao dar um passo que você sabia que não sabia dar?! E ainda ficar embaixo do sol tempo o suficiente pra ficar com fotodermatose?
Ela faz biquinho.
—O prêmio do concurso era uma bolsa em um curso de ballet e eu ganhei mesmo quebrando o tornozelo no final, valeu a pena ter treinado.
—Ah... Parabéns, Maíra...
Digo enquanto me sinto confusa, ela foi simplesmente humilhada naquele dia pela Aiko, como seu sorriso nunca foi embora...?
Seria a mesma coisa que ver o quão indigna você é, da mesma forma que eu vi, e continuar se achando digna de algo...
—Isso explica o sumiço da escola, mas não das redes sociais, você não respondia ninguém, Maíra.
Nesse momento, mal estou prestando atenção, não entendo o que aconteceu, não é nada do que eu esperava... Será se foi outra coisa que aconteceu? Será se Aiko na realidade elogiou Maíra e eu não percebi?
—Ah, claro, eu fiquei de castigo depois de ter me machucado e ficado com fotodermatose, meus pais tiraram o celular de mim, mas tudo que era atividade eles passavam pra mim, inclusive, obrigada por ter mandado as atividades e as coisas do TCA, Anabella.
Saio de meu tranze, confusa pelo uso sério do pseudônimo inventado.
—“Anabella”?
—É, é muito bonito, acho que combina mais com você assim também, você está muito bonita, não dá mais pra chamar você só de flor. A Isabella me contou que Anahí significa flor, por que sua mãe te deu esse nome? É um nome tão...
—Nada especial, comum, eu sei disso.
—É... Mas você merece um nome melhor, Anabella combina com você.
Ela me diz com um sorriso, tento sorrir de volta, enquanto Kazuki parece desinteressado e no mundinho dele.
Me pergunto o que fiz de errado pra ter desabrochado um sentimento tão melancólico nele, mesmo no dia em que Maísa voltou.


Ao entrar na sala de artes, encontro Annie, uma aluna da sétima série, junto de Victor e de Yuri, dois alunos da oitava série.
—Oi, você é nova no projeto? Qual seu nome?
Pergunta Annie, vindo em minha direção.
—Meu nome é Anabella.
Ela estende a mão pra mim, me recebendo com um sorriso reluzente.
—Meu nome é...—
—Annie.
A interrompo, ela me olha perplexa.
—Como você sabe?
Contenho algumas risadas, contemplando a inocência da garota mais jovem.
—Não tá mesmo me reconhecendo?
—... Não... Eu nunca te vi... Eu... Nunca te vi, né??
—Sou eu! A Anahí, bobinha!
Ela me olha fascinada, parece surpresa pela minha súbita metamorfose.
Ao escutar quem sou, os outros dois alunos vem em minha direção, com olhinhos brilhantes e sorrisos reluzentes.
—Você está muito bonita!
—Vermelho ficou muito bem em você, ainda mais essas rosas! Como se troca de flores?
Acabo evitando as perguntas, algumas obviamente não possuindo nem sequer resposta, trocar de flores iria totalmente contra as leis da natureza, é impossível.
—Mudando de assunto, pode ver nossos desenhos?
É uma das poucas coisas que gosto nessa escola: o fato de gostarem de mim no projeto e procurarem por mim quando querem olhar pra alguém. Gostam do meu trabalho, mas também gostam de mim, é como se aqui fosse meu pequeno sistema solar, uma miniatura do de Aiko.
—Claro, deixa eu ver.
Vou até onde os três estão, olhando para as três folhas que são seus trabalhos. Estão tentando aprender a desenhar metal, senhor Takumi está ensinando isso a eles. Yuri fez um bom trabalho com o sombreamento, costuma fazer pinturas sem marcas, mas ao invés de pesar a mão, que seria o problema de muitos artistas, ele não tem peso algum na mão, o metal está sem pigmento, as cores estão claras e misturadas demais.
—Está bom, Yuri, sua pintura é muito boa, você não deixa a folha marcada, mas você deixa a pintura muito clara.
Ele acena com a cabeça que sim.
—É... Eu sei...
—Você pode tentar usar lápis de 2b ou 4b pra isso, eles soltam mais grafite e você não precisa exatamente fazer força ou colocar muita pressão neles. Eu tenho aqui, olha.
Coloco minha bolsa sobre a mesa, pego meu estojo, o abro e retiro dois lápis aparentemente iguais, ambos sendo pequenos por serem meus lápis antigos, entretanto são diferentes em tipo, entrego eles ao garoto de olhos puxados e cabelos negros.
—Obrigado, Anahí.
Vou até a obra de Annie, noto instantaneamente a folha meio marcada, os cinzas pesados e sem luz, praticamente uma bola escura demais pra ser uma bola metálica.
—Annie, não se força o lápis na folha, já te disse isso. É por camadas que se colore...
Ela parece envergonhada, a garotinha de cabelos enrolados e pele parda me dá um sorriso leve, as margaridas envolvendo seus braços atravessando o uniforme feito sob medida pra se adaptar às suas flores, assegurado pela lei do estatuto da criança para evitar acidentes com as flores humanas que nascem aleatoriamente pelo corpo..
—Eu sei...
—Se eu te der lápis claros, você vai pesar a mão do mesmo jeito, vai ser até pior, é melhor eu nem inventar de te dar lápis 2H, tenho um bem antigo igual os que dei ao Yuri, mas nesse caso, nem adianta fazer caridade. Pro seu caso, você precisa de paciência pra resolver isso.
Olho para o desenho de Victor, o círculo conseguiu adquirir um bom efeito metálico, com tons harmônicos de cinza.
—Muito bem, Victor. Tente ajudar seus amigos.
Noto senhor Takumi me fitando, entendo o recado e vou de encontro a ele.
—Bom dia, senhor Takumi.
—Aqui está o trabalho que está fazendo. Hoje irá pintar com guache.
Ele posiciona minha tela de pintura sobre o cavalete, logo reconheço o rascunho da obra que ele me mandou desenhar, é uma obra que não é bem lá receptiva, é O Anjo Caído, de Alexandre Cabanel. Estou desenhando um invejoso, é até irônico.

Senhor Takumi me entrega o recipiente da paleta de cores e algumas tintas guache, abre novamente o arquivo da pintura e me pede para criar os tons e pintar. Sou a única pessoa do projeto que está fazendo algo diferente, provavelmente pelo fato de que já sei o que o professor está ensinando, isso só acontece em artes.
Começo a criar os tons, ajustando meus óculos ainda rachados e começando a passar o pincel na superfície da tela, crio primeiro as sombras, sempre fiz dessa forma quando pintei com guache, pinto o rosto do ex anjo com o tom das sombras da obra, cobrindo totalmente o desenho com todos os tons escuros.
Conforme vou terminando de usar uma base diferente do comum, algumas partes vão secando aos poucos, espero que sequem por um tempo, enquanto aguardo, chamo o professor que estava passeando explicações de como pintar metal aos poucos alunos que vieram ao projeto hoje.
Ele vem até mim, então pergunto:
—Professor, por que Lúcifer?
—Passei as divindades, mas pra haver divindades é necessário haver humanos e às vezes seus alter egos.
—Ah... Entendi... Mas você não passou nada sobre o Deus cristão. Por que do nada Lúcifer?
Ele se senta em minha frente, seus óculos quadrados e seus olhos sérios me encarando, as flores de lótus em suas mãos me fazendo me sentir como se estivesse na presença de alguém que sequer se é possível imaginar o que pensa.
—Como você aprende, Anahí?
—Ah... Eu aprendo... Estudando... Mas o que isso tem hav...—
Ele me interrompe.
—E como você estuda?
Não consigo responder exatamente.
—Precisa de um professor pra estudar.
—Bom, não exatam...—
Ele me interrompe novamente, pegando minha mão, e colocando o pincel nela.
—Precisa de um professor pra aprender. Os cientistas, se é o que você está pensando, também têm um professor, é o mesmo pra todos.
Ele me faz mergulhar o pincel em uma tinta que nunca usaria pra formar o tom que procuro e colocando na versão mais próxima do tom do cabelo que eu havia conseguido produzir, tentei misturar vermelho com marrom, mas não consegui o tom exato, ele adiciona uma pequena quantidade de roxo ao marrom, depois adiciona um pouco de vermelho, formando um vinho sofisticado, em seguida, ele adiciona laranja e consegue perfeitamente o tom que procurava.
—A natureza é a professora de todos eles. Você aprende copiando, isso é fato.
Ele posiciona minha mão na tela de pintura, me fazendo pintar o cabelo do anjo caído com a tom de base certa de acordo com meu método.
—Você está diante do ser mais perfeito depois de Deus de acordo com a bíblia, mas esse ser quis copiar Deus demais. Ele podia copiar Deus até certo ponto, até o ponto em que o Deus da bíblia permite que outros seres o copiem, você está pintando o primeiro ser que aprendeu e evoluiu criado por Deus, o primeiro invejoso, era o mais perfeito, por isso tinha inveja, porque os mais perfeitos aprendem.
Ele continua guiando minha mão.
—Você acha que ele estava errado? Talvez estivesse. É o diabo, é claro que estava errado, errado para as leis de Deus. Mas Deus limita o ser humano, Lúcifer entendia a infinidade de tudo. Mas, Anahí, você não é Deus, não pode ser algo que não tem potencial pra ser. Lúcifer poderia ter se contentado, mas a ganância de um tolo que entende a infinidade de tudo é quase inevitável.
—Não tenha medo, no nosso mundo, não existe vez ordenada, as tintas podem ser usadas sem esperar que a vez da outra acabe, é só você saber dividir o tempo.
Me sinto nervosa.
—O que você quer dizer com isso tudo, professor?
—Você pintou uma pessoa que te lembrava de cada conceito no lugar de suas personificações...
Sua mão vai até minhas rosas, apalpando as pétalas entre seus dedos.
—Por que desenhou o conceito de Lúcifer como Lúcifer...
Ele sussurra em meu ouvido palavras tão cortantes quando facas como se estivesse manuseando uma colher.
—E não o conceito da inveja de alguém que entende a vastidão, mas é tola, como você mesma?
Não consigo responder. Mais uma vez, fui rejeitada pelo que achei que seria meu lar. Sinto as lágrimas se formando em meus olhos, por que ele está me insultando?
—Por que tenta ser deus, Anahí? Deus também não pode ser nada, é tanto que não vai acabar sendo nada no final, a união de todas as forças é igual a 0. Por que acha que não te pedi pra desenhar o Deus da bíblia? Porque ele é tanto que no final, se você tentasse desenhar, não teria sentido e não seria nada.
—Professor...
Minha voz sai trêmula, as lágrimas escorrem pelos meus olhos, mas imediatamente são enxugadas pelos dedos do professor.
—Os humanos se juntam porque eles são iguais, na realidade, se juntam porque tem potenciais iguais: o potencial de se tornar o que já são, iguais. O potencial das pessoas é de se tornar iguais a outras pessoas, sempre foi, mas esse potencial entende que uma pessoa só pode se tornar igual a alguém que tem potencial de se tornar igual. Você não pode ser algo pro qual não tem potencial.
—Mesmo que duas pessoas se tornem iguais, só se tornam iguais porque são objetos diferentes. Não existe igualdade sem diferença. Você não é a Aiko, não vive sob as mesmas circunstâncias que ela e você sabe disso, você está perdendo seu potencial de se tornar igual buscando ser algo pro qual você não tem potencial, na realidade, está perdendo seu potencial de se tornar igual buscando ser algo pro qual você não tem potencial, na realidade, está perdendo sua própria identidade, gastando seu dinheiro e tempo com coisas que não são suas.
—Como você sabe...?
As lágrimas continuam germinando e desabrochando, ele seca uma por uma.
—Você tem assumido a mesma postura que ela, mesmo que não perceba. Você se porta igual a ela, quando ela bate o pé contra o chão algumas vezes, você faz o mesmo. Até na escolha de como posicionar as rosas você a copiou, colocou as flores ao redor de sua cabeça, da mesma forma que os galhos de Sakura envolvem a cabeça daquela menina.
Gelo, poderia mesmo isso ser verdade?
—Tem prestado tanta atenção nela que tem tentado ser ela, mesmo que eu saiba muito bem que você não gosta dela porque não gosta de si mesma, isso ficou claro quando chorou e soltou néctar por conta de uma simples obra e comentário. A reação que teve a esse incidente: tentar apagar a sua própria identidade; comprova isso.
—Eu sei que você não comprou o papel, é como eu disse, o papel era o mais importante, você gastou todo o seu dinheiro nesses artifícios de falsidade, a maquiagem é arte, Anahí, mas a arte mostra a realidade de uma forma diferente.
As lágrimas lavam meu rosto, o professor tira vantagem disso para esfregar as lágrimas contra a base, revelando o verdadeiro tom de minha pele.
—Você tornou artifícios que poderiam retocar sua pele e entalhar sua identidade verdadeira em sua pele em artifícios de mentiras.
Sinto como uma flor sendo despedaçada lentamente, tiro as mãos de senhor Takumi de meus olhos, me sentindo humilhada.
—O que eu posso fazer? Se fosse verdade isso que o senhor está falando, deveria ir falar isso pros outros alunos também. Todo mundo presta atenção nela, é impossível não prestar, ela se autoproclamou a deusa da turma, se fosse assim todo mundo estaria igual a ela a esse ponto, até os professores.
—E quando foi que disse que não fazemos isso? A diferença é que nós tomamos para nós algumas das pétalas que Aiko deixa pra trás, da mesma forma que acontece na natureza, em um jardim, quando a pétala de uma flor cai no solo, ela se decompõe e é absorvida por todas as flores ao seu redor. Já você, quer ser um clone, você quer as raízes, o caule e as flores de Aiko. Você quer a Aiko, enquanto a maioria quer os nutrientes que ela pode nos proporcionar.
Engulo em seco, começando a chorar, me sentindo incapaz de negar coisa aoguma do que ele disse. Meus punhos se fecham em frustração enquanto as veias da minha cabeça saltam levemente quando a minha pressão arterial sobe.
—Já estou indo embora. Não sei se vamos terminar a obra, eu não sou o Diabo, professor!
Me sinto traída, rejeitada, agarro minhas coisas e simplesmente saio correndo da sala, meus olhos cheios de lágrimas, subo as escadas e consigo convencer a coordenação a me deixar sair mais cedo, mesmo sendo horário do projeto.
Abraço minha mochila com bastante força, correndo enquanto choro, me enfio em um beco qualquer, começando a me despedaçar, chorando e me sentindo horrível, até o único professor que deveria gostar de mim não gosta de mim desse jeito, eu quero mudar, virar outra pessoa, assim eu gostaria de mim. Primeiro a Aiko, depois minha mãe, agora até meu professor?!
Me lembro do real motivo pra tudo isso ter começado, aquele que eu não queria lembrar, as memórias da rejeição que tentei disfarçar com mentiras odiosas.
O fato de que na verdade, eu também gostava da Aiko no começo. Eu também gostava dela, ela parecia legal, incrível, era inteligente, chegar perto dela era a mesma coisa que se aproximar de muito conhecimento em estado bruto. A maioria das pessoas se aglomerava ao redor dela, eu era menos diferente das outras pessoas, mesmo que já não fosse tão parecida. Eu também era puxada pelo seu centro gravitacional.
Um soluço desabrocha em minha garganta, abraço a mochila com mais força.
O que me fez querer superar ela foi o fato de que um dia, eu tentei desenhar ela, foi no começo do ano.
Eu ainda não entendia bem as sombras ou como sombrear um desenho muito bem, tentei sombrear e acabei fazendo uma sombra meio estranha, quando mostrei pra ela, ela instantaneamente viu o erro e começou a me explicar como sombrear o desenho direito, como a sombra ficava mais “dura” caso o objetivo bloqueando a luz estivesse mais próximo da superfície e como ficava mais “macia” se estivesse mais distante.
As lágrimas descem pelo meu rosto feito uma cachoeira, lavando a base e revelando o verdadeiro tom de minha pele ao mesmo tempo que começa a enfraquecer a cola dos cílios postiços.
Eu só queria que ela tivesse dito que tinha gostado do desenho, eu provavelmente queria que ela me visse como igual e me desse elogios também, igual todo mundo faz com ela, mas tudo que ela fez foi me dizer como fazer sombras, como se tudo que ela enxergasse fosse meu erro.
Naquele dia, eu pensei que ela desenhava muito melhor do que eu, e que eu tinha tentado dar um desenho feito por uma criança de 3 anos pra reencarnação de Da Vinci esperando ser tratada como incrível... Desenhar é a única coisa que sei fazer, eu não podia deixar a dona dos céus tomar a única gota de água que é minha por direito.
Soluço mais uma vez, quero ir pra casa... As memórias que escondi entre minhas pétalas começam a invadir meu coração.
Talvez eu quisesse ser única pra alguém, especial pra alguém, não queria ser só um número, então acreditei que talvez eu fosse ser a única pessoa a ser elogiada por ela.
Depois de um tempo, limpo minhas lágrimas com a manga da minha camisa, a manchando com as lágrimas que diluíram a base e soltando um suspiro trêmulo.
Vou até o ponto de ônibus com meus olhos inchados, desejando voltar pra casa e não sair de lá nunca mais.

Chegando em casa mais cedo, paro na esquina ao me deparar com um homem desconhecido, usando óculos de sol e uma cartola, vestido como um homem de negócios clássico enquanto entrega uma caixa de madeira pra minha mãe, que recebe a caixa e entrega um bolo de dinheiro para o homem, que a entrega um papel de volta.
Espero que ele vá embora, mas ao perceber que ele está vindo em direção ao local onde me localizo, rapidamente finjo normalidade, andando cabisbaixa e passando por ele, estranhamente sinto que é algo que eu não deveria estar vendo.
Retiro meus sapatos antes de entrar em casa, mas não os deixo na porta que é o que geralmente faço, vou tentar entrar escondida em minha própria casa.
Entro, andando nas pontas dos meus pés e segurando meus sapatos em minhas mãos, consigo me esgueirar pela casa, vendo ela deixar o papel misterioso embaixo de um maneki-neko  que ela comprou e deixou na sala de estar, ao lado da nossa televisão.
A observo pelo corredor, vendo ela andar em direção ao banheiro e se trancar lá, meu coração bate em meu peito, mais uma vez atraída por objetos insignificantes, mas dessa vez, não vou desistir do objeto.
Ando rapidamente até o local, sentindo minhas mãos tremerem enquanto minha respiração vacila, ela pode sair de lá a qualquer momento e me ver aqui.
Minhas mãos suadas e repletas de base derretida levantam o gatinho dourado e retiram o papel, sujando levemente ambos, ao ouvir a maçaneta da porta do banheiro se abrir, volto imediatamente à sala de estar e vou até meu quarto, me esgueirando como uma fugitiva e trancando a porta silenciosamente.
Olho pro papel, percebendo que é como uma pequena tabela, com algumas informações estranhas:
100 de Handroanthus albus humanus – R$825 (R$ 8 per g + despesas).
Despesas:
Neurotransmissores (✓) – 25mg ocitocina
Fertilizantes hormonais (X)
Néctar incluso (X)
Sede oficial, Itaim Bibi, 119.
Me sinto confusa, que diabos são 100g de Handroanthus albus humanus e porque custou 825 reais? Se isso custou 825 reais, não vamos ter nem o que comer esse mês! O aluguel é 1000 reais, minha mãe recebe 1750, um milagre levando em consideração que ela é uma empregada e às vezes não recebia nem um salário mínimo direito, mesmo se matando de trabalhar. Mas, espera, a conta não bate, vamos ficar sem casa???
Ela me deu 200 reais, teriam sobrado 1550, iriam ficar 550 reais descontando o aluguel, para pagar as contas de água, luz e comida, nossa conta de internet é um plano básico de 70 reais, como nem eu nem ela paramos em casa direito, a luz é um valor fixo de 70 assim como a água, mal consumimos água.
Daria pra passar tranquilamente levando em consideração que as comidas, antes caras, como carne, balas, bolachas, salgadinhos, ovos, tudo isso teve seu preço reduzido, vivemos à base de carnes de todos os tipos e comidas processadas, já que o valor dos vegetais e verduras se tornou um absurdo pelas questões dos protestos à favor dos direitos dos vegetais.
Antes, as pessoas estavam mais concentradas em coisas que realmente eram necessárias!
Discutiam acessibilidade, questões de pessoas com deficiências ou condições especiais, discutiam a saúde das pessoas, foi só aquele estrupício daquele vereador começar a se importar com: Discutir o casamento homossexual com argumentos de um acéfalo, foi a primeira etapa da plantação de um jardim de burrice. Depois, quiseram refazer uma votação óbvia pra saber se uma garotinha abusada deveria ter direito ao aborto, até que chegou a dizer que era pró-vida de todos, inclusive das árvores e criou um mundo burro.
A Aiyra morreu por causa desses tontos que se acham servos de Deus, que ao invés de discutir sobre colocar a droga de um hospital perto da favela ou dar um jeito de deixar ela menos isolada, acham importante falar do direito de um vegetal que cientificamente nem sente dor. Um país cheio de preconceito, que oprime o amor, mas que ao mesmo tempo, essas pessoas oprimidas se tornam tão opressoras quanto quem as oprimiu.
Eu não gosto muito de vegetais ou frutas, mas minha mãe gosta. Agora, ela não pode nem sequer consumir vegetais, é muito caro, mas aparentemente ela nem se importa muito com isso pra ter gasto tanto com seja lá o que for que está escrito nessa droga desse papel, já que nem dinheiro pra comida vamos ter, dessa vez não vai sobrar nem um centavo, vamos ficar é com saldo negativo!
Respiro fundo, tentando pensar de forma racional.
Espera um momento... Ela recebeu uma caixa de madeira, igual onde ela guarda o incenso dela, não? O cheiro da caixa é de ipê amarelo...
Uma onda de entendimento hipotético faz meus olhos se arregalarem.
Corro até a minha bolsa e pego meu RG novamente, encontrando abaixo de meu nome a informação:
Planta: Ipê-amarelo (Handroanthus albus).
Começo a tremer, na tabela dizia humanus? Humanus só pode ser humanos! Até meu meio neurônio consegue traduzir isso!
Comprar ipê amarelo humano? Eu jurava que os incensos eram feitos com flores naturais, não humanas! Como isso sequer é possível? Isso só pode significar uma coisa... Minha mãe está envolvida com o tráfico de flores humanas.

Raízes da Inveja (Demo oficial)Onde histórias criam vida. Descubra agora