Prólogo

2K 77 10
                                    

Os músculos das minhas coxas queimavam enquanto eu forçava meus pés a aumentarem a velocidade da corrida, desviando das árvores e pedras do caminho, abaixando nos lugares certos para que não batesse minha cabeça em algum galho. O vento da madrugada era frio e os barulhos dos animais noturnos eram perceptíveis aos meus ouvidos, embora eu corresse muito rápido. Meus músculos queimavam, meus pés ágeis desviavam dos obstáculos, meus olhos estavam atentos ao caminho e meus ouvidos aos sons que se propagavam nas Terras Livres. Meu coração estava acelerado acompanhando o esforço físico, enquanto a minha alma deslizava para uma paz fazendo com que ambos, coração e alma, sentissem uma liberdade que nunca sentiram antes.

Não havia muros, nem limites, tampouco regras. Eram as Terras Livres. Os animais que remanesceram e não foram extintos através dos séculos pela destruição humana do planeta e aqueles que de certa forma evoluíram se locomoviam e faziam seus distintos barulhos por toda mata, alguns deveriam estar em seus esconderijos dormindo, outros se alimentando. Toda uma vida além dos muros do SPT se derramava pelas Terras Livres e eu corria sentindo o vento gelado com um gostinho de liberdade e tranquilidade no céu da boca. Meus pulmões com o passar do tempo começaram a arder por ar, então escolhi diminuir a velocidade aos poucos até que eu pudesse parar de um modo seguro.

Quando parei em um lugar que não conhecia, dei meia volta observando os troncos das grandes árvores e olhei para o céu estrelado. Até o céu parecia diferente daquele que eu crescera vendo da janela do meu quarto ou das noites que escolhia correr pela floresta próximo de casa no meu Estado. Tudo parecia mais livre, mais selvagem. Eu conseguia ouvir sons que eu nunca antes tinha ouvido na vida, avistei uma coruja selvagem tomar voo de um dos galhos de árvores, uns ratos do mato correrem por entre as árvores e um deles sendo emboscado por uma serpente vermelha.

- Você é muito rápida, quase te perdi de vista. – Meu companheiro de corrida disse logo depois de parar ao meu lado, tentando normalizar sua respiração devido a corrida.

Eu dei mais uma volta parada no mesmo lugar e soltei uma longa gargalhada. Olhei para ele e estendi meus braços para demonstrar a imensidão de tudo ao nosso redor.

- Olhe só para tudo isso. – Exclamei e soltei mais outra risada. – É impressionante.

- É, tudo muito impressionante e temos sorte por eu ainda ter uma noção de onde estamos para não nos perdemos e não termos como voltar.

- Quanto tempo temos para ficar por aqui? – Perguntei andando até um tronco todo coberto de musgo e tocando-o.

- Leve o tempo que quiser, só não podemos ir mais longe porque eu não posso garantir que vou saber voltar depois.

Não respondi, observando um casulo que tinha quase o tamanho da minha mão, preso em um dos galhos da árvore seguinte. Peguei-me imaginando tudo por aqui durante o dia. Se com a luz da lua e todo ambiente noturno era tão vívido e impressionante, imagine com a luz do sol, o canto dos pássaros e todas as variações de cores que poderiam ser vistas de longe. Era impressionante, que mesmo depois de séculos de destruição humana, desperdiço de nossos recursos naturais e poluição, nosso planeta ainda sobreviveu, se reciclou e se reestruturou. É claro que a tecnologia humana também tinha ajudado, mas o que a própria natureza exercera sozinha ainda me deixava fascinada. No meu Estado eu já podia ver isso, mas de um modo menos selvagem e mais especifico. Só que aqui, nas Terras Livres era tudo diversificado e bruto, sem limitações e livre. Maravilhoso. Extraordinário.

A raiva acumulada que me acompanhava começou a se dissipar conforme eu inspirava e expirava o ar frio do começo da madrugada. Pela primeira vez, correr resultou em algo. A raiva, a irritação, os pesadelos, as lembranças e o cansaço se dissolviam pela noite e eu me sentia mais leve. Mais livre. Mais viva.

RelutânciaOnde histórias criam vida. Descubra agora