Prólogo

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(...) gostaria de ser um crocodilo vivendo no Rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens.

JOÃO GUIMARÃES ROSA


(...) precisamos de história, pois o passado continua a correr em nós em cem ondas; nós próprios nada somos senão aquilo que sentimos dessa correnteza a cada instante. 

NIETZSCHE; Humano, demasiado humano



Tudo nesta história é imaginação, mas quase tudo aconteceu.



ONDE EU NASCI PASSA UM RIO



Onde eu nasci passa um rio

Que passa no igual sem fim

Igual, sem fim, minha terra

Passava dentro de mim

CAETANO VELOSO



O quanto as palavras podem mudar o destino de alguém?...

"As cidades, do mesmo modo que os seres vivos que se originam de minúsculas células, nascem de diminutos vilarejos anteriores, se reproduzem, se desenvolvem, conurbam-se. Há aquelas que eventualmente morrem. Umas são de índole agreste, são violentas, cheiram mal, enlouquecem e suicidam devagarinho seus habitantes; há outras tão aprazíveis, que tudo à sua volta iluminam e suavizam, parecem avencas altivas e delicadas. Entre as últimas, desde sempre, esteve nossa terra". Estas palavras de meu avô, Justino Jatobá, transcritas da última carta que me enviou, acabaram com minha relutância e me fizeram regressar ao lugar onde nasci depois de vinte anos.

Vislumbro as primeiras imagens quando o ônibus desce a estreita escarpa da Serra das Araras Azuis e descortina no cenário, entre incontáveis cores do entardecer, aquilo que lamento contemplar pela última vez. A natureza que serve de berço à minha terra apraz aos olhos e arrebata o espírito pela intensidade da beleza: límpidas praias temporárias, lagoas, baixios, ilhas, barcos e velas na direção do rio; rochedos, montes e serras sobressaem no rumo da caatinga e se estendem na imensidão; umbuzeiros, umburanas, urumbebas e baraúnas despontam, vez por outra, quebrando a monotonia ressequida dos arbustos ralos retorcidos e cactos que se expandem até onde a vista alcança. A planície é inóspita, é resplandecente, é infinita quando se observa sobretudo a linha que a separa do céu e não se distingue mais o que é planície e o que é céu. Em meio a essa aridez, surgem, em pontos esparsos no penhasco da serra, em cores vibrantes como obra de arte viva, a revoada de araras azuis ou a flor de uma orquídea. Sobressaem ainda mais nessa geografia uma abóbada celeste, sempre mais próxima da terra do que em qualquer outro lugar, com as nuvens esculpindo esculturas efêmeras, e a água do rio lambendo cariciosa o grande lábio da margem onde a cidadezinha agoniza.

Onde eu nasci passa um rioOnde histórias criam vida. Descubra agora