A partida (Casa Nova)

67 0 0
                                    


— ... e já que não sabe quase nada sobre quem é sua mãe, vou ajudar você um pouco: guarde o que vou revelar, ou então anote, se quiser. Não comente nada com ninguém, sobretudo seu avô, pois como você sabe, em nossa família, sempre estiveram envoltos em segredo os acontecimentos relacionados à vida censurada de sua mãe. Entendido?

— Sim... entendi, não se preocupe; sou grato pelo que está fazendo.

"Maria Flora viveu em união estável com seu pai quando ele enviuvou e ela ainda era muito jovem; tiveram somente você como filho; em dado momento, sem explicações, deixou vocês para vagar errante pelas cidades do vale são-franciscano, de porto em porto, frequentando bordéis e sempre partindo não se sabe pra onde. É muito culta, leitora contumaz dos cânticos sensuais de Salomão e de outros livros bíblicos sapienciais; apraz-se na cama com mulheres ou ocasionalmente com um homem; sexo intenso, anônimo, sem vínculo social, de gênero, afetivo, ou conexão com a rotina diária é a base de sua vida amorosa marginal, das ruas, da noite, apreciando prazeres que uma relação a dois, a três, proporciona. Bacante arraigada ao hedonismo do vinho, do sexo, da boa mesa, é mulher que não se deixa levar pelas rédeas do conservadorismo e do recato. Eis aí sua mãe, uma mulher rara; em certo sentido, a mais moderna das mulheres. Mas vive nela uma mulher ancestral – estranha, misteriosa, mágica e poderosa". Assim se expressou minha avó Maria Luiza um dia depois de minha chegada, pedindo sigilo; e quando também me entregou um papel com nomes de pessoas e endereços onde eu poderia encontrar minha mãe nas cidades vizinhas.

***

Dois dias depois de chegar, viajo com o intuito de encontrar minha mãe. Levando fotografias de quando ela era adolescente e as informações de minha avó, vou procurá-la em todo trecho navegável do rio partindo de Riopara, e se necessário, até Pirapora. Necessito reatar laços afetivos, reconstituir meu núcleo de amor incondicional; prefiro pensar que ela partiu para depois regressar a mim; não quero a ausência dela como legado, quero um tipo de presença, ainda que doa e me entristeça; existe uma incompletude causada pela carência de carinho materno. Então, é este o desafio que hoje me imponho: primeiro, procurar minha mãe; depois, procurar minha mãe...

Antes que o sol se levantasse no horizonte, um vapor, ainda não dava para distinguir qual deles no crepúsculo matutino, desponta tangente à curva do rio perturbando a paisagem e, junto com a correnteza, alterar a passagem do tempo acelerando os ritmos do lugar, atacando os altos barrancos cortados a prumo, revolvendo o leito e turvando a água nas manobras de atracação. É o vapor que me levará de Riopara a Sento Sé, terra ancestral das famílias Jatobá e Tapuya e onde eu possa, talvez, obter as respostas que procuro.

O sol se desprende do rio fazendo o brilho das pedras doer nos olhos, o vapor se desprende do porto quebrando, pela segunda vez, a constância do lugar e eu me desprendo dos pensamentos para apreciar a paisagem. De Riopara a Sento Sé são dezessete horas pendurado no vapor, que sobe contra a correnteza do rio e leva uma centena de pessoas amontoadas nos conveses.

— Dezessete horas até Sento Sé? – Pergunto.

— Depende da madeira que alimenta a caldeira, não encalhar nos bancos de areia, não der ventania nem cabeças d'água, se a embarcação não fizer água, nem ocorrerem estrepolias do Nego d'água. – Responde o comandante com fisionomia enfarruscada e entonação de voz austera, porém educada.

O apito do navio corta novamente o crepúsculo matinal que cobre a cidade. O comandante encosta-se na amurada despedindo-se do lugar, das pessoas ou talvez de um amor deixado ali; o sino da igreja badala chamando a cidade para a missa de domingo e novamente o navio apita despedindo-se. Um marinheiro estende os braços num adeus à mulher amada; a daquele porto, suponho.

Onde eu nasci passa um rioOnde histórias criam vida. Descubra agora