Onde eu nasci passa um rio

Sento Sé

O vapor se aproximava de Sento Sé quando vimos ao longe uma gigantesca muralha natural: a Serra do Encaibro, com suas encostas aprumadas e as cumeadas planas como uma mesa nivelada. Em seguida, avistamos um cordão de lagoas piscosas paralelas ao rio, destacando-se uma bem larga com quase dois quilômetros de comprimento, onde inúmeras pessoas acampadas em improvisados casebres pescavam utilizando redes, tarrafas e dardos; e garças-brancas planavam embelezando a paisagem.

Finalmente o vapor encosta no cais de atracação, ponto final de um molhe de acesso que se estende por dois quilômetros ligando o porto à cidade. Logo depois de atravessarmos toda margem fluvial, um extenso vale de carnaubeiras entremeado por pés de juazeiro formava uma paisagem natural que separava a cidade do porto e onde trabalhadores cortavam as palhas para extrair a cera utilizando enormes varas com facas afiadíssimas fixadas na ponta. A seguir, surgem três ruas com casas, armazéns, lojas de tecido e uma pensão, onde o proprietário, João Nunes sentado à frente, num tronco de árvore conhecido da população pelo nome de "toco da mentira", aguardava os clientes que chegavam nos vapores e propagava as notícias trazidas pelos viajantes que vinham das outras cidades ribeirinhas.

Ao nos aproximarmos da praça central, avistamos a igreja matriz de São José com seu alicerce de pedras, paredes de adobe e santuário folheado a ouro. Quando adentramos a praça, vejo, de imediato na Rua de Cima, o casarão da família Sento Sé, cujo ancião, chefe do clã, José Nunes havia construído, e onde, segundo meu tio Josué Jatobá, ele permanecia horas alisando as barbas respeitáveis e em estado meditativo calculava se o ano continuaria chuvoso ou se o sol campearia soberano no sertão, queimando a vegetação, matando animais e afugentando os homens. José Nunes Sento Sé, conforme meu tio Josué Jatobá continuou a me informar, era chefe político benquisto, pois tinha a confiança incondicional de sua numerosa família e todo apoio do povo na condução dos destinos do município que se estendia, por quase treze mil km², desde os confins do Oliveira até a Fazenda Pedras nas vizinhanças de Juazeiro.

Meu tio Josué parou a Rural e me apresentou aos membros da família Sento Sé, de quem é muito amigo, que estavam naquele momento em casa. O casarão do clã Sento Sé chamava a atenção por sua alta calçada ao redor, por seu avarandado se estendendo por toda a frente, pelas três portas e sete janelas de jacarandá almofadadas, de uma só peça, pelos tetos, em telha vã, sustentados por linhas de pau d'arco e bonitas peças inteiriças de carnaúba que serviam de caibros com aproximadamente oito metros de comprimento, todas perfeitamente certas e alinhadas. Sobre a porta principal, via-se gravado uma espécie de brasão com sete florões, o perfil de um indígena com seu cocar, as iniciais JAS do nome da família Juvêncio Alves de Souza e a data 1873, que suponho ter sido a data de construção daquele notável casarão.

Quando saíamos do casarão Sento Sé, uma caminhonete, carregada de pequenas caixas, passou ao nosso lado levando Maria Xibiu Seco que acenou para nós e sorriu. Meu tio respondeu sem nenhum entusiasmo, virou-se pra mim e disse: — Fuja dessa mulher, é uma desqualificada e extremamente perigosa, não queira aproximação. Aquelas caixas que você viu na caminhonete são alimentos que ela doa para o hospital e para o abrigo de idosos, obtidos com dinheiro de suas casas de prostituição e da venda de drogas. A polícia vem investigando, mas ela consegue manter seus negócios escusos na base do suborno.

— O senhor tem certeza do que está me dizendo, tio?

— Toda. Conheço gente influente e honesta do patrulhamento fluvial que está no encalço dela. Qualquer dia, o cartel Xibiu Seco desmorona. Inclusive, a fazenda dela aqui no município está sendo desapropriada, pois a polícia federal localizou na propriedade uma gigantesca plantação de maconha. Um movimento embrionário de trabalhadores rurais reivindica a posse da terra, pois já tramita no congresso um projeto de lei que destina essas desapropriações para projetos de reforma agrária.