Desde que partimos de Riopara venho observando o nível de poluição das águas do Velho Chico, e confesso: é assustador. Nos portos de todas as cidades onde atracamos, ou flutuando na correnteza, a poluição se faz presente em níveis alarmantes.
Dez horas da manhã em Bom Jesus da Lapa; no porto o sol é dominante feito uma tocha lá no alto e o céu é azulado e branco como as cores das vestes de Iemanjá, mãe de todos orixás. No entanto, a vida deixou de ser preciosa com a loucura e a insensatez humanas circulando como lírios e algas pelos mares, rios, lagos e em todo lugar onde haja qualquer agrupamento humano.
Enquanto observo o desembarque, ainda convalescendo dos cortes, à faca, na barriga, reflito: oferenda não é esse lixo de esgotos domésticos e industriais apodrecendo e envenenando as águas; nem esse pneu velho que só será biodegradado daqui a cem anos. Menos ainda essas baganas, camisinhas, absorventes e manchas de óleo, esse breu boiando, essa matança de peixes e da fauna aquática pela pesca predatória com explosivos, Yemoja!
Não são oferendas essas latas de sardinha, esses sapatos e essas sucatas de toda espécie; nem esses restos de embarcações afundadas, nem esses animais podres encalhados ou boiando; menos ainda esses patos e mergulhões mortos, Janaína!
Não fui eu quem lançou ao rio esse plâncton de garrafas PET; nem essas flores cobertas de uma fina fuligem de combustível e invisíveis cogumelos envenenados. Não fui eu quem mijou e defecou nas suas águas; asseguro que não fui eu, Dandalunda!
Não são ornatos para seu altar essas lanchas, barcos, veleiros, vapores, iates e transatlânticos luxuosos poluindo os rios e os mares, com todo tipo de dejeto, Deusa dos Mares!
Oferenda não é essa água fedendo a merda, nem esse tempo quente adoecendo o mundo com as calotas polares à deriva em contínuo degelo.
Nada, minha Rainha! De demasiado humano, nada. Nosso comportamento inumano faz a felicidade de viver me parecer cada vez mais fugidia. Por isso me apavoro vendo essas aves mergulhando e subindo com peixes radioativos em seus bicos.
Mãe Senhora, socorrei! Senhora Sant'Ana! Senhora da Conceição! "Transformai as velhas formas do viver".
Odôiyá!
Iemanjá!... outra coisa tem me deixado em profunda tristeza: nunca mais ter visto aquela danada que me deixou sem despedida quando eu já começava a decifrá-la. Já me sentia atado a ela por um nó górdio que ninguém desata. Podeis vós, mãe de todos esses caminhos do rio, trazê-la de volta para mim?
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Onde eu nasci passa um rio
RomanceInspirado na clássica narrativa "Édipo Rei" de Sófocles, o romance apresenta a comovente jornada de um filho em busca de sua mãe desconhecida. Navegando pelas cidades ribeirinhas que margeiam o rio São Francisco, Edinho se vê imerso em uma série de...