CAPÍTULO 2: Ruby

0 1 0
                                    

A noite já caía, mas as estrelas estavam encobertas por nuvens pesadas. Enquanto me afastava da pequena casa de madeira, senti o vento frio da floresta Heavy me envolver, como um lembrete constante de que estava sozinha novamente. O som dos meus passos sobre as folhas secas era quase abafado pelo silêncio esmagador ao meu redor.
Era sempre assim quando Heavy pressentia mudança. E, desta vez, eu
também sentia.

Minhas mãos apertavam a alça da bolsa, que balançava contra meu quadril. Dentro dela, não havia muito: algumas ervas, um punhado de roupas, e o diário que continha segredos que eu ainda não havia decifrado completamente. Minha mente ainda estava presa à conversa com Derek Thorne. A presença dele significava que o Reino já estava ciente de algo. Talvez soubessem mais do que eu pensava. Ou talvez estivessem apenas à procura de respostas que nem mesmo eu poderia
dar.

Eu estava certa de uma coisa, porém: precisava sair dali antes que mais
alguém aparecesse.

A lua cheia iluminava o caminho entre as árvores, mas o denso nevoeiro
começava a se formar, rastejando pelo chão da floresta como serpentes à espreita. Meus sentidos estavam aguçados, atentos a cada som, cada
movimento sutil ao meu redor. O coração batia firme no peito, mas o
medo me fazia sentir cada batida mais intensamente.

Foi então que ouvi.

Um sussurro.

Parei abruptamente, os músculos tensos e os olhos fixos na escuridão à minha frente. Não era o vento. Era algo mais. Algo mais profundo, mais velho. Lembrei-me das palavras de Aeternis na noite anterior. Ele está acordado. O terror que havia crescido em mim voltou com força total.
Quem ou o que estava acordado?

De repente, um movimento à minha direita. Virei-me rapidamente, mas
não vi nada além da névoa. Apertei os olhos, tentando discernir algo no meio do breu. O sussurro voltou, desta vez mais claro. Não era um som disperso pelo vento, era um chamado. Um chamado direto, como se algo estivesse se dirigindo a mim. E então, uma palavra formou-se no ar, fria e suave.

— Filha de Atry…

Meu coração quase parou. Ninguém sabia desse título. Ninguém além de Aeternis. Mas a voz não era dela. O frio percorreu minha espinha, e senti como se os olhos da floresta estivessem sobre mim, observando, esperando.

Engoli em seco e me virei novamente, apressando meus passos pela trilha estreita. Sabia que não poderia correr, mas o impulso de fugir estava começando a tomar conta. Minhas botas batiam contra a terra macia, cada passo reverberando como um eco dentro da minha mente.

Caminhei por horas. Ou talvez tenha sido menos tempo. O tempo parecia distorcido dentro de Heavy, como se a floresta estivesse me mantendo presa em um limbo entre o presente e o passado. No entanto, eu sabia que não podia me dar ao luxo de parar. Minha mãe sempre dizia que Heavy dava sinais quando o perigo estava próximo. E os sinais estavam claros: a floresta estava mais silenciosa do que nunca.

Finalmente, as árvores começaram a abrir espaço para uma clareira.
Meus pés pesavam, o cansaço começava a se apoderar de mim.
Sentei-me no tronco caído de uma árvore, tentando recuperar o fôlego e
clarear a mente.

A clareira era pequena, cercada por árvores altas que pareciam vigiar o
centro. Um pequeno lago refletia o brilho da lua, suas águas tranquilas
contrastando com o caos que sentia em meu interior. Peguei o diário da bolsa, e ao abri-lo, o aroma de pergaminho velho me trouxe de volta à minha missão. Minhas mãos deslizaram pelas páginas já desgastadas, até encontrar o símbolo gravado no final do último capítulo.

Era um círculo com runas antigas que eu nunca tinha visto. Algo sobre o
símbolo me incomodava, como se representasse um poder além da minha compreensão. Eu havia visto essas marcas antes… nas histórias que minha mãe contava sobre as antigas feiticeiras, aquelas que controlavam o destino dos reinos. As marcas eram um sinal. E eu estava começando a entender que elas estavam ligadas à escuridão que agora despertava em Heavy.

De repente, o som de galhos se partindo ao longe me fez pular de onde estava sentada. Alguém estava vindo. Ou alguma coisa.

— Filha de Atry… — a voz sussurrou novamente, desta vez mais próxima.

Minha respiração ficou irregular. Minhas pernas tremiam, mas forcei
meu corpo a ficar de pé. Não sabia de onde vinha a voz, mas sabia que não podia ficar ali.

Antes que eu pudesse dar mais um passo, uma figura emergiu das sombras da floresta, vinda da direção oposta à qual eu estava fugindo.
Fiquei paralisada.

Era uma mulher alta, envolta em um manto escuro que fluía ao redor dela como se fosse feito das sombras da própria noite. Seus olhos, brilhando em um azul intenso, fixaram-se em mim. Ela deu um passo à frente, e o chão ao seu redor parecia reverenciar sua presença, como se a floresta reconhecesse seu poder.

— Você tem algo que me pertence — disse ela, a voz grave e firme.

Senti o peso do diário em minha mão. Minha mente rodopiava. Quem era ela? Como sabia sobre o diário? Minha mãe nunca mencionou uma presença como essa. Uma feiticeira, com certeza, mas algo mais profundo, mais sombrio.

— Eu não sei do que está falando — tentei ganhar tempo, recuando um passo.

— Não brinque comigo, filha de Atry. — A forma como ela pronunciou minha linhagem enviou um arrepio pelo meu corpo. — O diário. Ele pertence a mim.

Apertei o diário contra o peito, sem saber o que fazer. Minha mente estava em conflito. Entregá-lo?Correr?Lutar?

— Quem é você? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— Eu sou a guardiã do que sua linhagem tentou esconder por gerações
— ela respondeu, os olhos queimando com uma intensidade sombria.
— E agora, está na hora de tudo ser revelado. De tudo despertar.

De repente, o ar ao meu redor pareceu pesar. A energia que eu havia sentido antes, aquela sensação opressora, agora estava emanando dela. A floresta parecia se curvar à sua presença, e pela primeira vez na vida, senti que Heavy não estava do meu lado.

O que quer que estivesse prestes a acontecer, eu sabia que seria o início de algo maior. Algo que minha mãe jamais pôde prever. O destino de nossa linhagem estava em minhas mãos agora. E, diante daquela mulher, eu percebi que minha luta estava apenas começando.

— Eu não sou filha de Atry! - digo em um quase grito

A mulher solta uma risada sombria.

— Não? Então como tem meu diário? - ela pergunta com os olhos fixos em mim.

— Eu sou neta de Atry. E minha mãe está morta. E esse diário é dela, não seu.

— Ela me roubou. Este diário não pertence a vocês. Nunca pertenceu e
nunca irá pertencer.

— E quem é você para afirmar isso? - pergunto. E me arrependo na mesma hora. A mulher some na minha frente, então eu não espero que ela apareça novamente. Começo a caminhar para fora de Heavy, e lembro do diário de minha mãe. Lembro dela correndo daqueles tentáculos.

Seria essa mulher aquilo? São muitas coisas passando em minha
mente em um momento nada adequado.
Quanto mais caminho, mais perdida fico. Heavy está se movendo, me prendendo. Algo que aprendi foi que nunca se deve andar em uma floresta sozinha, porque elas têm vida, e é verdade, elas têm. Florestas, rios, oceanos, mares, terra… tudo tem vida própria, eles decidem como as coisas vão ocorrer, e não temos como prever isso. Nós humanos não podemos simplesmente prever ou impedir isso, além que eles nos permitam.

Após alguns longos minutos, consigo retornar ao meu caminho, e por alguma razão, o tempo dentro de Heavy parece não passar. Quando sai de dentro dela, e retornei ao bosque de ventos, estava claro. Já havia amanhecido, mas lá dentro estava escuro como a noite, como um preto
onde a luz não ilumina.

Avanço alguns passos pelo caminho entre os pinheiros, há algumas flores na beirada, não sei distinguir quais são, mas são simples e delicadas. É capaz de se desmanchar com apenas um toque. Aprecio a visão, cada detalhe proporcionado por esse momento, afinal, nunca saberei se as verei novamente.
Quando olho para cima, minha respiração para. A uma pessoa ao longo
do caminho, vestida com uma capa preta. Engulo em seco. Lembro-me da mulher. Começo a andar para trás lentamente quando vejo um relance de seu rosto.

[390] Corações sombrios Onde histórias criam vida. Descubra agora