Divina decadência

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Brian se esforçava para escrever qualquer coisa no papel, os dedos  pesados tocavam as teclas da escrivaninha e os olhos começavam a se fechar, sonolento. Quando ele percebia que estava para cair no sono, chacoalhava a cabeça e esfregava os olhos cansados. O que ele esperava? Ficará a madrugada inteira conversando e bebendo com Fritz no cabaré. Sua cabeça girava, e girava.

Tudo no que ele conseguia pensar era Sally, sua voz, sua dança, sua aura. Mas não escreveria sobre ela, não podia!

De repente, começou a ouvir uma música vinda do lado de fora do quarto, talvez um outro inquilino? Apesar de da porta de seu quarto abafar o som, se incomodou quando a música aumentou em demasiado. Música clássica aquela hora da manhã?, pensou. Quem é o louco?
Com aquele som não conseguiria nem dormir ou mesmo escrever alguma coisa, e já estava com dificuldade para as duas coisas.

Ele saiu irritado de seu quarto, com os punhos cerrado, apenas com o colete preto e a camisa social, não era necessário usar sempre seu casaco para parecer um professor formal.
Ele seguiu o som, vinha logo da porta em frente ao seu cômodo, por isso conseguia ouvi-la tão altamente. Bateu, delicado, na madeira branca da porta vizinha. Assumiu uma postura paciente e esperou... ninguém o atendeu. A música continuou a tocar.
Ele bufou e deixou a delicadeza e paciência de lado, bateu três vezes com aquelas mãos grandes e pesadas. A música do lado de dentro foi diminuindo aos poucos, até não se ouvir mais nenhum som.
Alguns segundos depois, a porta se abriu numa fresta, pois havia uma corrente do lado de dentro que a mantinha não totalmente aberta.

O vizinho apareceu na pequena abertura da porta.
— Você? — disse Brian boquiaberto.

— Eu? — respondeu Sally Bowles com uma voz doce.

Ele não sabia o que dizer ,ou como agir. Quase havia derrubado a porta a porta da moça com suas batidas, e estava incomodando o lazer dela. Também não podia deixar óbvio que sabia quem ela era, ou que a tinha visto na noite anterior no Kit Kat Club.

— Desculpe incomodá-la — mentiu. — Estou procurando a Sra. Fraulein, sabe onde ela está?

— Ela saiu hoje cedo— respondeu breve, olhando Brian como aqueles olhos gigantes.

— Ah, Ah... A-h — as palavras se enrolaram em sua boca. — Certo, então. Obriga...

— Você tem um cigarro, querido? — perguntou Sally. — Estou desesperada.

— Claro — respondeu o britânico, rápido. Ficou feliz de ter um cigarro no bolso do colete, havia fumado tantos ontem com seu novo amigo Fritz. O pegou e entregou à vizinha. — Aqui.

Ela o pôs na boca, olhando para Brian, que apanhou um isqueiro do bolso da calça e acendeu o cigarro de Sally, com cuidado.

Ela deu trago e baforou a fumaça no rosto de Brian, sorrindo com as sobrancelhas levantadas.
— Divina decadência — disse. — Sou Sally Bowles.

— Sou Brian Roberts.

Sally fechou a porta com um baque forte, Brian ouviu o barulho de um trinco e então a porta se abriu por completo.
— Entre, Brian, querido.

Aquela moça baixa usava um roupão preto estampado de flores brancas, usava um forte batom vermelho mesmo àquela hora da manhã.
Brian passou pela porta e seguiu Sally. O quarto era grande, maior que o dele próprio. As paredes eram  brancas com cortinas rosas nas janelas, e tinha uma cama grande também, a música que tinha ouvido vinha de um vinil acima de uma cômoda.

— Ah, cigarro inglês — deleitou-se Sally depois de dar mais uma tragada, e soprou a fumaça no ar. — Ah! Eu já estou até pensando em alemão.

— Você é americana — disse Roberts.

Sally sorriu, orgulhosa, e se sentou num sofá de couro ao lado direito do quarto.
— E você é o novo morador britânico da pensão.

Brian desviou olhar para os moveis quando Sally cruzou as pernas, de uma forma propositalmente sensual, notou. Ela sorria contente com seu cigarro inglês.

— Há quanto tempo está aqui? — quis saber Brian.

— Eternamente — respondeu Bowles, breve.

— Que seria? — Brian se atreveu.

— Há exatamente quase três meses — respondeu Sally, entusiasmada. — E é a mais maravilhosa das pensões. Quartos maravilhosos. Tá tudo muito duro é claro, mas quem não está hoje em dia?

Ela despejou as cinzas do cigarro no sofá, sem se importar.
— Está gostando? — perguntou a Brian.

— Da pensão?

— Da pensão, de Berlim, de tudo!

— Bem...

— Florent Mark é a massagista da pensão, só de mulheres, é claro. Mas talvez ela abra uma exceção para você, já que é bonito.

Sally falava demais e muito rápido. Brian não se incomodava, mas notou uma diferença na voz fala dela. Era mais alta e irritantemente aguda, diferente da profunda sonoridade que soava quando cantava no cabaré.

— Estou... Gostando bastante, de tudo — falou Brian, sorrindo gentil. — Mas me falta algo.

Sally falou insolente:
— Seu quarto tem uma cama, precisa de algo além disso?

— Alunos. Eu darei aulas de inglês para pagar o aluguel.

— Ah, você pode usar meu quarto para isso — ela saltou do sofá e rodopiou de braços abertos no centro. — É praticamente uma suíte.

E de fato era um cômodo maior e relativamente melhor que o quarto de Brian.

A vizinha foi até um armário do outro lado da sala, abriu uma gaveta e pegou dois ovos. O que ela estava fazendo?, pensou.

— Você vai adorar isso — disse Sally quebrado os ovos e despejando o conteúdo em dois copos de vidro. — É um ovo acompanhando de molho de sauça e mais um monte de ingredientes.

Devia ser alguma especialidade alemã, Brian se forçou a acreditar. Seu estômago revirava só de imaginar o gosto daquilo.

— Você poderá dar aulas tranquilamente — falou Sally, derramando um líquido de uma garrafa sobre o copo com a gema do ovo. — Eu quase nunca estou aqui.

— Por que? — perguntou Brian muito curioso, ele gostaria de vê-la mais vezes.

— Fico fora o dia todo e trabalho até tarde no cabaré — respondeu Sally olhando-o por trás do ombro, enquanto mexia o conteúdo dos copos com uma colher. — Claro que eu posso ocasionalmente trazer um namorado para casa. Mas apenas ocasionalmente.

Ela pegou os copos, andou até Brian e lhe entregou um. Ele aceitou, gentilmente, mas o que havia dentro o fez querer vomitar. Era um líquido gosmento e vermelho misturado com marrom.

— Eu acho certo ir ao quarto do homem se puder — explicou Sally. — Se não, não parecerá muito bem se ocorrer ao contrário, não acha?

— Exatamente — concordou Brian. — Vejo que adquiriu muita sabedoria.

— Sabedoria não, querido. São instintos — disse-lhe Sally. — Tenho instintos muito antigos.

Ela chegou mais próximo de Brian e levantou o olhar para o rosto dele, ele era muito alto. Fitando-o com aqueles olhos grandes, ela disse:
— Eu tenho um sentimento muito estranho e místico com relação a você.

Ele não sabia o que responder, e mesmo que tivesse alguma resposta na ponta da língua, não conseguiria dizê-la pois, Sally falou rápido:
— Então, vai dar aulas aqui, tá bom? Tá bom?

— Tá bom — foi tudo o que Brian conseguiu dizer.

— Ah, vá hoje à noite no Kit Kat Club! É o cabaré onde eu trabalho — pediu Sally quase num grito. — Posso te apresentar uns amigos que podem querer aprender inglês.

— Tá bom.

— Saúde! — Sally tilintou seu copo no de Brian e virou o conteúdo pela garganta de uma vez.

Brian exitou, olhou aquela coisa vermelha e seu estômago revirou novamente. Mas não podia fazer uma desfeita com Sally e parecer rude, ela havia sido tão amigável e atenciosa com um desconhecido. Ela o olhava, esperando que ele engolisse a bebida.

— Saúde!
Brian respirou fundo e bebeu tudo de uma vez. Para sua surpresa, era estranhamente bom com uma mistura de sabores. Tinha um forte gosto mentolado, notou.

— Hum, tem hortelã — comentou para Sally.

Ela arregalou os olhos grandes, mirou o copo de Brian e depois ele mesmo.
— Oh, você pegou o copo com pasta de dente.













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