Prólogo

29 1 2
                                    

...O grito que ecoou na escuridão era uma manifestação de terror puro, uma fúria primitiva e insaciável. O som carregava uma agressividade cruel e uma fome implacável, revelando que a ameaça não era de um simples animal...



No final daquela tarde, o Sol derramava seus últimos raios intensos sobre a paisagem rural. A luz dourada e ardente começava a se estender pelas sombras das árvores, esculpindo formas longas e abstratas no chão. Ela se infiltrava nas frestas desgastadas do telhado da varanda, lançando um brilho suave e quente que destacava as imperfeições e a textura envelhecida da madeira. A paisagem parecia imersa em um abraço quente e ambarino, enquanto o crepúsculo se preparava para assumir o seu domínio.

O vento seco e implacável levantava um redemoinho de areia e folhas secas, rodopiando na terra árida que há meses não sentia a chuva. O calor escaldante do interior nordestino tornava o ar quase palpável, e a paisagem ressecada se estendia até onde a vista alcançava. O som predominante era o burburinho incessante dos pequenos pássaros que se aglomeravam em ninhos precários no matagal esquelético. Suas cantorias, embora fracas, eram um lembrete de que, mesmo na estiagem severa, a vida persistia, teimosa e vibrante, em meio ao mar de terra seca e vegetação murcha.

Sentado na varanda empoeirada, o velho Vital parecia uma sombra de seu antigo eu. Magro e envelhecido, sua pele era um mapa de rugas profundas, resultado de uma vida de exposição implacável ao sol e de uma irritação constante. Sua barba grande e desgrenhada, assim como seus cabelos brancos e emaranhados, caíam desordenadamente sobre seu peito nu; ele vestia apenas uma calça jeans suja de terra, que não parecia ter sido lavada há meses. Seus pés estavam calçados em botas surradas, igualmente imundas, que mostravam sinais de muitos anos de uso. A cadeira de balanço em que estava sentado, agora sem a função de balançar, parecia quase uma extensão de seu estado de desolação e cansaço.

Os poucos dentes restantes na sua boca estavam amarelados e desgastados, um reflexo do fumo e da bebedeira que haviam marcado sua vida. Seus olhos, fundos e pesados pela idade de 87 anos, carregavam um olhar impiedoso e fatigado. Eles percorriam o terreno árido da fazenda com um desdém silencioso, em busca da cadela que havia fugido do dono. - Piaba.

Não é como se o velho tivesse um grande afeto pelo animal de quatro patas, ele não era um homem afetuoso, e isso era bem sabido pelos filhos. Piaba, a cadela que sua falecida esposa lhe deixara como um dos poucos legados, não recebia mais que indiferença e raiva. Para Vital, a presença da cadela era um lembrete constante das dívidas e dos vícios de sua falecida esposa, e sua frustração frequentemente recaía sobre o pobre animal.

Apesar dos maus-tratos, a cadela era de uma beleza clássica brasileira. Ela era uma cadela vira-lata de pelagem curta castanho-claro, com um focinho alongado e olhos de íris escuras, sempre atentos, que refletiam a sua obediência pelo seu dono impiedoso. Alta e esbelta, suas pernas finas davam-lhe uma aparência elegante, mas também revelavam uma força ágil. Com um semblante que evocava a elegância e a sutileza do lobo-guará, sua presença era ao mesmo tempo imponente e graciosa.

Havia dois dias desde a última vez que Vital tinha visto Piaba. Após mais uma ameaça embriagada e repleta de soluços, ela havia se refugiado na densa e seca mata do interior nordestino.

Não seria a primeira vez que isso acontecia. O velho Vital fazia tinha esse costume antes da cachorra existir, antes mesmo da mãe dela nascer. Fazia com seus filhos, e fez com sua esposa. Era o que assistia seu pai fez com sua mãe. E o que o avô dele fez com sua avó. Apenas outro ciclo vicioso passado de geração em geração, onde a raiva é o vício que sempre é alimentado.

Animais FamintosOnde histórias criam vida. Descubra agora