#2 - Marcas

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A deliberação pelo Conselho dos Anciãos em relação à Quel foi rápida e unânime, principalmente após o pleito de Zer em se responsabilizar pela menina até que completasse 6 anos e pudesse ingressar como aprendiz. Rhano assistiu à apresentação do caso em silêncio e não levantou objeções quando teve a oportunidade.

Ao final da sessão, os monges se dispersaram e Zer levou a menina até o pátio externo para brincar, quando Hígo se juntou à dupla, que brincava de pique-pega. A menina foi na direção de Hígo e bateu com suas mãozinhas na lateral de sua perna e saiu correndo rindo.

"Acho que agora faço parte da brincadeira, então..." – o monge correu atrás de Quel, que fugiu dando gritinhos alegres até ser 'capturada' e levar um ataque de cócegas do Vitaris. Ainda com a menina no colo, Hígo falou em voz baixa:

"Zer, você viu isso?" – e apontou para três pontos muito pequenos no antebraço direito de Quel. O monge olhou com atenção, mas eram marcas muito discretas, como pequenas cicatrizes antigas.

"São iguais às marcas na perna da mulher que a acompanhava." – um calafrio subiu pela espinha de Zer.

Hígo deixou a menina correr em direção a um grupo de jovens aprendizes que continuaram a brincadeira de pique com ela.

"Algum Pakari te respondeu sobre esse tipo de mordida?"

"Ainda não, o que significa que não deve ser uma resposta fácil de dar. Por enquanto vamos manter esse assunto entre nós e observar, mas não se preocupe em relação à pequenina. Não há vestígio algum de veneno nela. Pode ter sido uma mordida de aviso e quando a mulher foi defendê-la, o que as atacou resolveu se defender de verdade."

Zer preferiu concordar e mudar o foco do assunto, mas os dois sabiam que aquela cicatrização não fazia sentido.

"Talvez os monges que estão vasculhando a floresta encontrem alguma resposta sobre o que matou a pobre senhora. Você acha que eram parentes?"

"Não acho. Os tipos sanguíneos não são compatíveis e os traços eram muito diferentes. Minha hipótese é que estavam em fuga, talvez de uma casa onde sofressem maus-tratos ou algo do tipo. Não havia nenhum tipo de identificação com elas. Tanto o anel da mulher quanto o colar da menina parecem adornos comprados em feiras itinerantes, sem grandes significados."

Zer concordou com a cabeça. "Talvez sejam recordações de família, as únicas que ela terá."

Com a voz esperançosa, Hígo passou o braço ao redor do ombro de Zer e falou: "A família dela agora somos nós: eu, você, os aprendizes e os outros monges que se tornarão seus mestres em alguns anos. Inclusive aquele senhor sisudo que não parou de nos observar desde que começamos a conversar."

Rhano estava sentado em uma área de meditação próxima com os olhos fixos na dupla.

"Vou falar com ele. Estou devendo um agradecimento."

"Vou levar Quel para comer alguma coisa. Não acho que ela vinha se alimentando bem nos dias que antecederam sua chegada." Hígo fez um sinal de boa sorte para o amigo e seguiu atrás da menina enquanto Zer ia em direção ao seu antigo mestre.

Apoiando sua espada no chão, Zer se sentou ao lado de Rhano.

"Obrigado por não levantar objeções em relação à permanência da menina."

O monge mais velho fez um gesto contido de afirmação com a cabeça. "Preciso dizer que se eu já fosse parte do Conselho de Anciões, talvez tivesse agido diferente."

Essa declaração surpreendeu Zer. A diferença de pouco mais de 30 anos entre os dois monges pesou na atmosfera da conversa: "Seu aniversário de 69 anos está chegando. Por que alguns meses de diferença em relação à sua posição o fizeram agir assim?"

"Quando se é do Conselho, não existem decisões pessoais, somente aquelas que apoiam o melhor para o coletivo. Mas eu percebi, no instante que você chegou com aquela menina no colo, que ela preencheu algo em você."

Zer o olhou com ternura, mas Rhano olhava firme para frente, como se sua mente estivesse em outro lugar.

"Alguns poucos aprendizes podem se tornar mais do que alunos. Preenchem o espaço vazio dos filhos que escolhemos não ter quando nos tornamos monges e nos marcam de forma única. E quando chegam aos 16 anos e decidem partir ao final do treinamento, o vazio é enorme."

"Sei bem disso, Rhano. Já vi muitos jovens irem e virem, mas sempre temos um grupo novo de crianças assustadas para nos apegar novamente."

"Não se engane. Essa é a dinâmica de um professor: nos sentimos realizados por ampliar o alcance de nosso conhecimento através dos aprendizes. Somos puro orgulho quando nossos alunos são convidados para missões ou para defender reinos e fazer parte de grandes exércitos. Também sentimos profunda alegria quando vocês decidem ficar e se tornar monges, como você, Lizu, Garoa...torcemos pelo sucesso e pela sobrevivência de cada um de vocês com afeto e serenidade."

O monge fez uma pausa, refletindo se deveria prosseguir, então se virou para Zer e disse:

"Espero que essa criança não traga tempestades para seu coração. Eu sei os danos que elas podem causar."

"Vou considerar suas palavras, Rhano, mas não se preocupe. Cuidarei de Quel como uma futura aprendiz, mantendo o olhar de mestre e meu coração sereno."

Rhano aquiesceu, mas completou de maneira firme: "Ficarei de olho nela."

Suas palavras não tinham um tom de cuidado e sim de vigia.

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Os Contos de Greenfar - A Lenda de QuelOnde histórias criam vida. Descubra agora